The Project Gutenberg EBook of José Estevão, by Jaime de Magalhães Lima This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at www.gutenberg.net Title: José Estevão Author: Jaime de Magalhães Lima Release Date: May 21, 2009 [EBook #28902] Language: Portuguese Character set encoding: ISO-8859-1 *** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK JOSÉ ESTEVÃO *** Produced by Pedro Saborano. A partir da digitalização disponibilizada pela bibRIA. Jayme de Magalhães Lima José Estevão França Amado, Editor. Coimbra. 1909. JOSÉ ESTEVÃO Composto e impresso na Typographia França Amado, rua de Ferreira Borges, 115--Coimbra. JAYME DE MAGALHÃES LIMA JOSÉ ESTEVÃO Coimbra F. França Amado, Editor 1909 Póde o racionalismo alinhar argumentos para annular o despotismo da auctoridade pessoal e nos persuadir de que os unicos poderes legitimos, na direcção individual ou collectiva dos homens, são a consciencia e a verdade, reveladas e illuminadas pelo pensamento, pela logica, por um exame intimo, completamente alheio á consideração e interferencia das qualidades e da attracção ou repulsão d'aquelles que nos cercam, presentes aos nossos sentimentos, em contacto immediato ou na imaginação e recordação historica. Póde mesmo no rigor da deducção levar-nos a confessar que assim deve ser, quando o espirito attingir uma maioridade authentica, uma independencia etherea. Mas a realidade das cousas, perseverante, na placida e indulgente ironia em que docemente escarnece da firmeza dos conceitos e das presumpções da razão, continua a deixar-se levar mais pela seducção das pessoas do que pela exactidão e belleza dos systemas. Afasta do caminho abstracções, ainda as mais bem fundadas, não desiste de ordenar que os homens se guiem por influencias humanas e lhes obedeçam, preterindo por esse modo e sem cessar as determinações e instancias de syllogismos, que facilmente atraiçoamos a cada passo, convencidos todavia da perfeita bondade e rectidão do nosso proceder. Por certo, uma força occulta nos conduz; e, pela energia e tenacidade, deverá ser tão legitima como os mandados da razão. Dir-se-ia que, para se tornar efficaz, a doutrina, sobretudo a doutrina moral, carece de personificação consentanea e de exemplo. Porventura, nem a sublimidade christã teria conseguido triumphar se Jesus, pobre, flagellado, paciente, a não houvesse santificado, immolando-lhe o sangue perante as multidões e o vulgo, se, pelos actos mais do que pelas palavras, não houvesse dado testemunho, até ao martyrio e morte ignominiosa, da plena consubstanciação do corpo e do espirito arrebatados n'uma unica aspiração. Uma mysteriosa e vaga lei psychologica quererá talvez que a verdade só seja verdade quando se mostrou em fórma palpavel, e só possa dominar dominando-nos pela capacidade e fascinação dos homens nos quaes transitoriamente encarnar. D'essa tendencia á confiança e abdicação na auctoridade estranha não encontrei melhor exemplo, em toda a minha vida, do que a preponderancia de José Estevão em Aveiro entre os homens da sua geração e entre aquelles que immediatamente lhe succederam. Quando comecei a sentir conscientemente o que em volta de mim se passava, já tinha morrido José Estevão. Mas que profundo e absoluto imperio não o vi exercer?!... Que largo e indisputado reinado! A sua vontade era a sentença ultima; o seu julgamento a suprema justiça. O que queria elle? O que desejava? Como apreciava os factos e as intenções?!... Em tudo, nas cousas pequeninas como nas grandes, não se podia ir alem, fossem quaes fossem os caprichos em jogo, sem averiguar primeiro do conselho e mandados de José Estevão, irrevogaveis. A tutela era perfeita. Esse homem, que se batera pela liberdade, deixára-nos escravos do seu proprio dominio; escravidão voluntaria, sem embargo, no fundo um despotismo. Nem sequer era prudente aventurar juizos sobre o caracter dos contemporaneos com quem elle tratára; estavam julgados, e seriam bons ou maus, conforme nos seus olhos se houvessem reflectido. «José Estevão dizia...», «José Estevão queria...»; chegadas a esse ponto, as discussões rematavam. A lembrança das suas palavras, dos seus gestos e attitudes e do seu proceder dirimiam pleitos que a mais avisada ponderação não lograva solver. Os motivos d'auctoridade prevaleciam sobre toda e qualquer outra tentativa d'explicação. A amizade, que o rodeára de tão grandes dedicações emquanto andou no mundo, redobrava d'affecto depois que elle d'aqui partira; e constantemente o resurgia das cinzas para o interrogar e seguir. Belleza e bondade, rectidão e injustiça, até o aspecto comico das cousas, tudo elle havia apontado e regrado d'uma vez para sempre, pela imposição do seu pensamento, pelo calor de iras sagradas, e não raro pela rutilencia e agudeza dos gracejos. A voz baixava ao pronunciar-se-lhe o nome; se alguem invocava aquella sombra e ella voltava no seu esplendor d'eterna gloria, emudeciam, por uma insinuação profunda de respeito e carinho, quantos entreviram a apparição. Viveu-se assim em Aveiro durante prolongados annos, n'este temor e veneração ultra-tumular d'uma magestosa figura, sob a soberania d'uma alma nobre entre as mais nobres. N'esta sujeição se vive ainda. E oxalá em igual obediencia os vindouros possam viver no correr dos seculos! Que armas constituiram e constituem aquella força sobrenatural? Por que extraordinario conjuncto de faculdades e sentimentos, por que impulsos e indefectivel vehemencia d'elevação se divinisou aquelle homem? Eis o que n'estas paginas procuro analysar, antecipadamente certo de que nunca me será dado desfiar, fio a fio, as prisões que nos subjugaram. Por muito feliz me tenho se algumas tiver destrinçado; sem falsa modestia o confesso, e tambem sem corar da propria insufficiencia, tão ardua se me afigura a empreza. Ha invariavelmente no genio qualquer cousa essencial e irreductivel, d'uma integridade invulneravel, inaccessivel ao exame, e resultando em que, depois de percorrermos um largo circulo de observações, ao fim, fatigados da louca obsessão de aprehender sempre illudida, temos de renunciar ao esforço improficuo e render-nos a um derradeiro poder, revelando-se-nos só para ser adorado e nunca perscrutado--o encanto. I IDEIAS POLITICAS IDEIAS POLITICAS I Por muito que a dependencia pése ao orgulho da especie, a grandeza dos homens tem de referir-se ás circumstancias do seu tempo. A vulgaridade do preceito e os vicios e erros da sua applicação infinitamente repetida não lhe prejudicaram a legitimidade e inteireza; não isentam da necessidade de o considerarmos e respeitarmos na apreciação de qualquer cuja physionomia tentamos analisar, heroe ou deus que elle houvesse sido. No mais vil como no mais nobre penetrou uma parcella, por vezes minima e em muitas outras capital, d'uma energia alheia e inconsciente, arrastando, involvendo e confundindo na sua vibração o caracter individual. Agora succumbe e logo resiste, hoje cede e amanhã domina, ora lucta e se defende, ora se identifica e conforma, mas sempre terá de mover-se sob a influencia d'attracções exteriores, vagas, impetuosas, das quaes jámais conseguirá libertar-se absolutamente. De tal intimidade e tão persistente ficarão a todos, sem excepção, no aspecto, nas tendencias e inclinações, em todo o modo de ser physico e moral, traços que não são nossos, que não viéram de nós, que não creámos, que nos foram como impostos, gravados por actividades externas; e ao mesmo tempo, sob essas pressões, perdem-se elementos proprios da nossa personalidade ou, pelo menos, atenuam-se e afrouxam na expansão. O criminoso e o santo, o maior resplendor e a infima miseria, nenhum fugiu ás contingencias d'essa lei. Quantos se ergueram em fama e ventura e quantos rolaram no pó da ultima desgraça e da obscuridade, todos foram bafejados ou flagellados pelos turbilhões anonymos da sua epoca. Para bem comprehendermos José Estevão, teremos pois de começar por uma inquirição summaria das correntes de pensamento a cujos impulsos se viu sujeito. Politico e soldado, teria de as sentir profundamente. Talvez mesmo dissessemos melhor que foi politico e soldado porque, por uma rara agudeza de intuição moral, as sentiu profundamente. Mas, seja como fôr, inspirado por ellas e reagindo ou sofrrendo-lhes apenas o impeto, a regra que nos manda ligar a mentalidade dos homens ás condições da sua epoca é de respeitar em toda a hypothese, obrigando de preferencia n'aquella em que o pensamento, traduzido immediatamente em acção, tem de contar com o correctivo do movimento simultaneo das actividades oppostas. Póde o poeta e o philosopho architectar um mundo a seu modo, abstraindo quasi por completo do tumulto que o cerca; o que os outros fazem pouco lhe perturbará o sonho. Não póde porém ser assim o luctador que desce á arena e, em vez de enlevar ou convencer, quer estabelecer novos moldes d'existencia terrena. Este encontrará, nas construcções já feitas e nas que outros procuram erguer, graves estorvos ao seu emprehendimento, limitando-lhe os planos, apertando o espaço livre para a sua orbita, e não raro coagindo-o a desistir e emigrar para região mais favoravel, ou, caso bem frequente, a contentar-se na realidade com uma parte modestissima de idealismos gigantescos. Accrescentarei mesmo, antecipando reflexões que ao deante desenvolvo, que por todas essas provações passou José Estevão perante as surprezas e contrariedades das pressões do seu tempo. Tambem elle, apezar do vigor athletico do coração, sentiu e confessou tentações de desistir da peleja, d'emigrar dos arraiaes politicos para outros mais tranquillos e salutares, de se render, vencido, e deixar o campo a adversarios e a camaradas, muitos dos quaes se revelavam mais funestos á realisação das suas aspirações do que os inimigos declarados. E, quanto á redacção pratica da largueza dos seus sonhos, experimentou-a a cada passo, sabe Deus com que dôr. Uma cousa se não reduz nem amesquinha todavia com as circumstancias do tempo; é a estatura intellectual e moral dos homens. Essa salva-se sempre de toda a derrota. Aquillo que cada um recebe do ambiente não anulla afinal, nos verdadeiramente fortes, o caracter da personalidade; este sobrepõe-se-lhe e, sem perder o que possue de commum e geral, sobreleva-lhe, distinguindo-se com uma intensidade e realce que o apartam do vulgo. Não póde a grandeza d'alma crear sociedades á sua imagem e semelhança, veio encontral-as feitas, cortadas d'influxos differentes, uns impuros, outros claros, conduzindo uns a profundezas tenebrosas, levando outros a regiões illuminadas; mas o modo por que ella se houve em meio d'estes turbilhões, a energia inspirada e a audacia que revelou, modificando-os e encaminhando-os, o vigor com que emergiu de caudaes revoltos e turvos para uma atmosphera crystallina, isso nos dará a medida da grandeza. Para que um organismo cresça e se desinvolva e para que a pujança d'um temperamento possa manifestar-se, é necessario, indispensavel, que seja de natureza identica á do ambiente, onde os acasos do destino o collocaram; opposta ou heterogenea, dar-lhe-á a morte subita ou lenta, n'um definhar ignorado e infecundo. Mas, parallelamente, se a actividade propria assume um alto grau d'intensidade, a reacção d'esse organismo sobre o ambiente será tão efficaz que em determinados momentos a preponderancia se inverte. Portanto, para julgar com exactidão dos resultados e suas causas, carecemos ter presentes á lembrança todas as forças que se conjugaram na creação e attitude d'aquelles vultos superiores que nos deslumbram pela estatura, pela magestade e pelos feitos. Só assim lhes prestaremos o culto que merecem, n'uma perfeita lucidez de consciencia; e só assim tambem os poderemos seguir sem errarmos a jornada pelo desvairamento de illusorias miragens. II José Estevão nasceu em 1809. Antes dos vinte annos tinha entrado na politica. Aos desoito batia-se com as armas na mão, e, vencido, emigrava. Nos combates a que, moço generoso, corria inflamado em esperanças de dias venturosos para a sua patria, encontrava-a sob o dominio espiritual da França. As nossas revoltas e aspirações eram reflexo do que se passava em França. Reflexo frouxo, alterado, produzindo frequentes distorções do modelo abstrusas até á caricatura, fazendo degenerar por vezes largos gestos divinos de gigantes em esgares de anões impotentes, mas reflexo authentico em todo o caso, constantemente derivado d'aquella mesma luz e, em maré de fortuna, valha a verdade, reproduzindo-a com um brilho igual ou superior ao do fóco d'origem, aliás deslumbrante. Tenhamos sempre este facto em lembrança. É capital. Reconheceu-o José Estevão, em 1840, claramente, quando, no primeiro discurso do Porto Pireu, fallou da «França que sempre aqui se nos inculca por modelo»; e lembrava que «a esse grande arsenal da legislação franceza vão de continuo os nossos estadistas buscar os exemplos e as theorias governamentaes». E, poucos dias depois, no segundo discurso do Porto Pireu, respondendo a Almeida Garrett, insistia na influencia da França sobre o pensamento e proceder dos nossos homens publicos. «Estão no Pireu», disse, «os que no seculo XVIII mandam vir de França por atacado quintaes e quintaes de discursos do abbade Maury e d'outros e que, ensopando estas insossas comidas com molho de Guizot e Rover-Collard, expõem á venda como eguaria exquisita a chanfana da soberania da razão, da supremacia legal das capacidades, julgando que a grosseira cosinha doutrinaria, que com seus pasteis tanto tem arruinado a saúde dos povos e reis, ainda póde satisfazer o delicado paladar das nações, acostumadas aos apetitosos guisados da soberania popular, da igualdade e da justiça.» Julgou porém legitima essa influencia, embora na passagem citada precedentemente a indicasse mais para castigar a fraude, o commercio de mercadorias avariadas que a astucia nem sempre desinteressada dos contrabandistas ia buscar além dos Piryneus, do que para ostentar o fulgor do ouro de lei que de lá importavamos. Em 1858,--desoito annos mais tarde, note-se, e a distancia entre as duas datas d'affirmações identicas póde esclarecer-nos sobre a persistencia do facto a que são allusivas, em 1858, discursando no parlamento sobre o triste incidente da barca franceza _Charles et George_, sob o pungir d'aggravos fundos e não poupando á França a accusação dos seus erros, observava, calma e nobremente, com aquelle espirito de justiça que jámais o desamparou, sem se perturbar pela agudeza da dôr, que «a França, se não foi a primeira iniciadora da liberdade na Europa, póde dizer-se que foi quem primeiro a ensinou em escola publica na mesma Europa, porque a pôz em linguagem vulgar, porque a sujeitou á apreciação de todos os povos, porque a adaptou a costumes com os quaes se assemelham os costumes da maior parte das nações europêas.» Eis as fontes em que bebiamos o pensamento da nossa politica, as boas e as más, as salutares e as maleficas. N'essas palavras d'apostolo e de soldado, bem medidas e ponderadas, encontraremos a revelação bastante da proveniencia das correntes em que fluctuavamos, da attracção da sua limpidez e tambem, miseria humana! da vasa que traziam suspensa e por momentos a escurecia. III A França do tempo de José Estevão vivia na anciedade de saldar o encargo formidavel que a sua audacia lhe impozéra,--a victoria e consolidação d'aquillo que na historia se designou pelo nome de principios da Revolução Franceza. Procurava, n'uma inquietação interminavel, cumprir as obrigações que as circumstancias politicas e a propaganda e promessa fascinante dos seus genios havia creado,--trazer aos povos de todo o mundo a redempção dos males e angustias passadas, provenientes do despotismo dos homens e das classes governantes, e dar-lhes em troca, por uma nova constituição social adequada, a felicidade perpetua. O seculo XVIII legára-lhe um amontoado informe de destroços e aspirações, que ora se mostrava tenebroso ora resplandecia, uma confusão indistrinçavel de cousas caducas, mortas e putridas, e de sementes a despontarem e a germinarem, tumidas de vigor e irradiando belleza; alternavam, n'uma extensão infinita, as ruinas irreparaveis e os fructos tentadores de fecundissimas seáras. E era d'isto que o engenho e o esforço dos homens havia de tirar uma sociedade renascida em riqueza e justiça, em plenitude dos bens do corpo e da alma, em toda a sorte de formosura; d'esse tumulto haviam de surgir a paz, a alegria e toda a ventura, reinos de bemaventurança como o mundo jámais conhecêra. A miseria, a oppressão, quanto nos faz a vida sombria e triste, iam varrer-se da face da terra para os limbos infernaes da historia. Affirmavam-n'o apostolos exaltados que pela crença davam o sangue e o ultimo alento, sacrificando-os gloriosamente no patibulo e nos campos da batalha. «Se quizérmos dar uma ideia do grande movimento que foi a revolução franceza, diremos» nas palavras de quem a estudou e conhece profundamente[1] , «que foi a destruição de tudo o que era meramente tradicional e o estabelecimento da existencia humana n'uma base de pura razão, por meio d'um rompimento directo com tudo o que era historico.» O despotismo dos reis e da nobreza feudal, prolongando na realidade a servidão da gleba, quando já o espirito do tempo e as lições da experiencia a haviam condemnado como uma desgraça e monstruosa; privilegios e desigualdades calamitosas que redundavam em fome de milhares de boccas e na corrupção sordida d'alguns poucos privilegiados; um clero e uma egreja que pelo exemplo negavam a toda a hora a doutrina christã e a substituiam por formulas magicas, cujo monopolio lhes pertencia e cuja observancia dava a graça e a salvação eternas; a degradação da religião, por este modo convertida n'um culto de signaes e em devoções estupidas, apagando-lhe n'um ritualismo inane toda a elevação em espirito e toda a limpidez de consciencia, e isto ao mesmo tempo que os sacerdotes de Jesus davam o triste espectaculo da sensualidade e do luxo perante multidões de trabalhadores a morrer d'indigencia; uma demencia de vaidades, gozos e interesses sobrepondo-se á miseria geral dos povos; e, por outro lado, o anathema dos pensadores e philosophos, desvendando a lepra das sociedades e inflamando-as em visões de cura, de saúde e de força, posto que este ultimo elemento não fosse na opinião de bons espiritos o principal e influissem mais no assombroso movimento de revolta os factos e as cousas do que o estudo, a reflexão e a phantasia dos prophetas d'uma era nova[2] :--todo esse descredito do passado e do existente fermentou e explodiu n'uma onda de destruição e de sangue. A arvore carcomida, que exteriormente parecia robusta e magestosa mas no intimo estava apodrecida e desfeita, ruiu n'um momento com um estampido pavoroso. Ouviu-o com espanto a Europa inteira, e embriagou-se nos fumos que os destroços exalavam. Abalaram-se os fundamentos de toda a ordem constituida. Aquella vertigem, embora primeiro se revelasse em França com uma intensidade sem precedentes, era commum, em differentes gráus, a toda a Europa central e do occidente, exceptuando a Inglaterra que muito se antecipára já no caminho das reformas pedidas em tamanha violencia; e, se em França se manifestava primeiro, era porventura porque alli haviam attingido maior extensão e mais duro imperio os males a que se pretendia pôr termo, e alli tambem haviam nascido, em mais larga escala e mais profundos, os devaneios generosos de redempção e a confiança n'uma instantanea e segura conversão da miseria em fortuna, medeante o triumpho de puros principios philosophicos. N'uma febre de reforma nunca vista, varreu-se o passado com todos os seus bens e com todos os seus males; na esperança de dias melhores caiu-se n'um delirio de mudar a ferro e a fogo as instituições e os homens, não raro pelo simples amor de mudar, de todo esquecida a razão de ser d'aquillo que se proclamava ruim e como tal se reduzia a pó. [1] G. Brandés, _Main Currents in Nineteenth Century Litterature_. Ed. ingleza. (W. Heinemann, 1906). [2] Barante considera infundada a asserção de que os auctores do seculo XVIII eram responsaveis pela revolução que nas suas duas ultimas decadas o assignalou. Julga a litteratura d'essa epoca apenas um symptoma da doença geral. A litteratura seria a expressão do estado social. Na sua opinião, a guerra dos sete annos teria feito mais para enfraquecer a auctoridade em França do que a Encyclopedia; e o caracter profano da côrte de Luiz XIV, emquanto perseguia protestantes e jansenistas, fez maior mal á reverencia pela religião do que os sarcasmos e os ataques dos philosophos. As injustiças com a antiga ordem social, perseguida e combatida por muito funesta, coincidiam porém a cada passo com a deficiencia e desastres das tentativas e concepções modernas para satisfação das aspirações que estavam destinadas a realisar immediata e completamente. Era certo, visivel e manifesto, que uma transformação da consciencia politica se havia operado e reclamava traducção consentanea nas leis e nos costumes. O congresso de Philadelphia, treze annos antes da revolução de 1789, em 1776, definira n'estes termos a nova crença: «Consideramos como evidentes por si as verdades seguintes--Todos os homens são iguaes; possuem direitos inalienaveis. Entre estes direitos encontram-se a vida, a liberdade, o esforço pela felicidade. Os governos foram estabelecidos entre os homens para garantir estes direitos, e o seu justo poder baseia-se no assentimento quotidiano dos governados. Todas as vezes que uma forma de governo qualquer se torna destruidora dos fins para os quaes foi estabelecida, o povo tem o direito de a mudar e abolir». A legitimidade da revolução e o caracter sagrado dos principios em nome dos quaes se fazia, não se punham em duvida. As divergencias iriam encontrar-se nos processos d'execução, e sobretudo na forma e natureza da construcção politica que havia de substituir o antigo e decrepito edificio. Sobre esse ponto, o seculo XVIII legára á França, juntamente com indomaveis impulsos humanitarios de liberdade, igualdade e fraternidade, tres correntes politicas, tres attitudes differentes bem accentuadas na empreza herculea de firmar na terra o reinado da justiça:--a corrente que Voltaire personificou, corrente de puro exame e negação, apenas dissolvente, apontando com uma ironia mortal os erros, iniquidades, crimes e insensatez do antigo regimen, porventura não se detendo a esboçar outro systema, porque acreditava na reparação completa dos vicios predominantes por um movimento moral interno, dispensando d'abandonar as formulas constituidas, e limitava a tarefa de saneamento a infundir-lhes novo espirito e novos costumes no exercicio dos seus poderes;--a corrente que encarnou em Rousseau, constructiva, corrente d'organisação, refundindo a sociedade em outras bases, num plano logico, absoluto, radical, que não admittia desvio ou alteração e ignorava diversidade ou dissemelhança entre os instinctos humanos, todos bons, segundo o philosopho conjecturava, no estado de natureza;--e por ultimo, corrente mais frouxa, menos nitidamente traçada, mas, sem embargo, com uma existencia tão real, persistente e efficaz como as demais tendencias em acção, a corrente que Montesquieu trouxe á luz, bem inspirado no profundo conhecimento da vida pratica em que os encargos profissionaes o fizeram penetrar, e que magistralmente esboçou no _Espirito das Leis_, condemnação do dogmatismo e prodromos adeantados do criterio evolucionista, estabelecendo, d'uma vez para sempre, com um rigor que as theorias scientificas modernas confirmaram e ampliaram, que as leis teem de sêr fundadas em multiplas e complexas condições de raça, de temperamento e de tradições, e nunca, para serem estaveis e proficuas, poderão derivar de principios absolutos, inalteraveis, fixos. Prevaleceram no primeiro impeto da revolução franceza a negação voltairiana e o dogmatismo philosopliico, destituido d'elasticidade, d'uma rigidez deshumana, apertando, em excessos quasi prohibitivos, o espaço necessario á expansão da variabilidade das paixões e instinctos, que aliás lhe competia regular e libertar, como annunciára, captando por isso as sympathias dos ingenuos. Mas não se manteve nem podia manter-se. A seccura do racionalismo, além d'ignorar as necessidades psychologicas da imaginação e da phantasia, temperando de devaneio poetico as durezas da existencia, esqueceu tomar em conta as particularidades da raça e da historia de cada povo, com as suas concepções religiosas e as inclinações moraes correlativas, sentimentos a que correspondem necessidades de realisação pratica, que levaram seculos a crear e não se destroem n'um dia por um simples gesto de quem manda, ou seja imperador ou tribuno, victima da fé em uma uniformidade absurda, tomou por crime sujeito a sancção penal o que não estivesse d'accordo com a deducção de principios abstractos, e assim preparou a reacção e a propria desgraça, congregando contra si todos os elementos violentamente excluidos do seu plano ou por qualquer causa contrariados. E quem assistisse aos acontecimentos e os visse com o olhar dos genios, poderia desde logo, como de facto succedeu, julgar o futuro pelo presente e pelo passado e fazer a historia antes que os tempos lhe ratificassem a assombrosa prophecia. «O seculo XVIII», escreveu então M.me de Stael, «proclamára os principios d'um modo excessivamente incondicional: é possivel que o seculo XIX explique os factos n'um espirito de excessiva resignação com elles». Veio a reacção, primeiro com o imperialismo napoleonico, depois com a restauração pura e simples da monarchia e seus velhos systemas. Não lhe faltavam elementos, muitos se haviam conservado fieis á antiga ordem politica, por egoismo, pelas saudades dos seus ocios e regalos, pelas honrarias e riquezas abolidas e offendidas, por simples passividade ou indifferença, pelo respeito do passado e seducção de sua magestade e esplendor, dos seus aspectos de opulencia e solidez, pelo poder do habito que fazia acceitar como boas as sujeições mais odiosas e como naturaes e legitimas soberanias absurdas, superioridades e distincções de sangue e de classe que a mais leve reflexão devia dissipar instantaneamente. Demais, a gloria de batalhas vencidas por toda a Europa encaminhava o espirito popular para o pólo opposto a aspirações de liberdade, igualdade e fraternidade, cujo maior inimigo é e será sempre o militarismo, com a disciplina degenerando em annulação total da liberdade, e com a força preterindo constantemente o direito e negando sem cessar a fraternidade. Rolando as cousas politicas em esse novo pendor, inventaram-se concordatas com a egreja catholica, cuja auctoridade não houvéra meio d'esmagar. De concessão em concessão, talvez, ou pelo menos em parte, pelo cansaço das proprias guerras e luctas, e muito pelo desengano da felicidade que tardava e não se approximava só pelo effeito de derrubar o passado, succedeu á furia da justiça a ancia d'ordem, vaga negação da liberdade, declarada exigencia do restabelecimento da regra e da imposição, restaurando, com as penas correlativas, obrigações e deveres sociaes d'outros tempos que a revolução desprezára e contestára. A anarchia, propria de toda a epoca demolidora, gerou o despotismo que é soccorro obrigado de situações semelhantes; e d'esse incidente partiu a orientação para novo rumo. Aos principios de liberdade, tomando-a pela dissolução de multiplos vinculos sociaes e invocada no interesse individual, veio oppôr-se o principio da auctoridade, coagindo a sujeições em nome do interesse da communidade. Até aquelle largo e generoso humanismo que, derrubando fronteiras, fazia do mundo uma familia e de todos os homens irmãos, começou a perder terreno, vencido pela ideia de patria; a reacção do principio do seculo XIX, chamando em seu auxilio as tradições nacionaes, logo por esse facto traçava limites, marcava divergencias entre os povos e combatia o enlevo humanista, de sua natureza universal, propenso a apagar radicalmente todo o vestigio de divisões de territorio, raça, costumes e instituições. Na logica instinctiva do seu impulso, a reacção em França, avançando e substituindo pelo absolutismo tradicionalista o absolutismo revolucionario, erro por erro, foi terminar na restauração pura e simples do passado, no rei, na côrte, no predominio da hierarchia ecclesiastica, nos privilegios, supremacias e dependencias, esquecida a breve trecho do que em tudo isso havia d'oppresivo e injusto, a tal ponto insupportavel que determinára as violencias destruidoras da revolução. Afferrando-se aos preconceitos e bastas vezes á obsessão de retaliações e vinganças e á simples instigação de conveniencias temporaes, convertendo a restauração da ordem politica e religiosa historica na restituição de proventos, commodidades e gozos com a privação dos quaes nunca tinham podido conformar-se as aristocracias reinantes, cegas e indifferentes á miseria profunda dos povos que o feudalismo omnimodo e sem caridade importava, a reacção tradicionalista cantou victoria alegremente, de todo alheia ao facto de que a revolução, boa ou má segundo diverso criterio, era um acto consumado e consagrado, a registar tambem entre as tradições, tendo d'ora avante logar marcado entre os factores das sociedades, senão pelo que d'ella ficasse inabalavel, ao menos pelos vestigios das construcções que architectára, na verdade por um e por outro modo. Atravez de todos os impulsos e tentativas conservadoras, muitas sem duvida legitimas, uma dissolução formidavel da antiga ordem social se tinha operado, condemnada não só pelas desgraças a que conduzira, pela fome e miserias que gerára, mas ainda por falta de base sufficiente, abalados como se mostravam os seus fundamentos cosmogonicos e theologicos, pela analyse, pela observação scientifica, e por um lucido despertar da consciencia da dignidade humana. Não via a reacção que as sociedades são mudaveis de condição, e hão-de mover-se e transformar-se emquanto viverem, d'aspiração em aspiração; tinha por definitivo o que era transitorio, e até o que se encontrava morto para sempre; em accessos d'egoismo desvairado reputava crime, para o qual pedia e applicava rigores extremos, todo o esforço pelo progresso na fundação d'um systema de relações sociaes mais de perto inspirado na justiça do que aquelle que até alli se havia mantido e se degradára em aviltada corrupção. Banira-se-lhe do espirito a noção do sentimento que equiparava entre si todos os homens e jámais poderia ceder das suas instancias; nem mesmo a percepção da fraternidade christã e seus deveres lhe restava, possuida, como andava, d'uma falsa comprehensão do principio d'auctoridade que, no seu conceito e na pratica do seu governo, resultava n'um principio de sujeição, a bem ou a mal, aos poderes constituidos, legitimados e sagrados pela religião, intervindo com a graça de Deus, apposta pelos sacerdotes, para sanccionar o direito de quem mandava e o dever de obediencia dos que eram mandados. Uma reacção d'essa natureza não podia vingar. Assim como a revolução fôra vencida por virtude do caracter abstracto, por não conceder o seu logar a motivos de sentimento, de cuja satisfação a felicidade humana não prescinde, a reacção tinha de cair por excluir do seu campo as aspirações de liberdade e reforma que áquelle tempo já ninguem podia arrancar do coração dos povos. Nem mesmo muitos dos que apoiavam a reacção ignoravam que alguma cousa da revolução tinha de perpetuar-se e dilatar-se; se apparentemente o negavam, era por calculo, por hypocrisia, por adulação e lisonja dos vencedores, para irem aproveitando os favores do poder em quanto elle durasse, promptos a tributar igual respeito a quem quer que substituisse os governantes quando os ventos mudassem. A revolução tinha sido um despotismo invertido, usando de toda a violencia dos tempos anteriores á sua explosão, mas agora em beneficio dos principios revolucionarios e, quando Deus queria, das ambições proprias dos que eram designados para a representar na lei e no mando. Depois de quarenta annos de luctas, a França não tinha alcançado ainda a famosa liberdade pela qual andava suspirando e sangrando, e meditava novos meios de a conquistar, formas de governo que lh'a assegurassem, em paz e estabilidade. Ao tempo em que José Estevão entrava na politica, nos derradeiros annos da terceira decada do seculo XIX, a França, sonhando pôr termo aos conflictos em que desde a revolução se vinha esgotando, chegava a esse compromisso que se intitulou a monarchia constitucional. Tudo lá havia de caber, o passado e a revolução, a liberdade e a auctoridade, a religião e o estado, os padres e os seculares, os apostolos e os mercantes, o idealismo e a cobiça. Na opposição de tendencias em todas as quaes havia uma parcella de verdade e bem entendida conveniencia e interesse social, a rectidão dos homens bons e sinceros hesitava; ora se inclinava a reformas, ora se convencia das vantagens de manter a constituição historica, abonada por seculos de grandeza. Aos que menos lucidamente distinguiam as razões fundamentaes e nobres d'essa incerteza de caracteres superiores, sómente e lealmente preoccupados com a ambição d'acertar, essa attitude afigurava-se contradictoria e dando facil presa a suspeições, que nunca faltam em conjuncturas identicas. Mas, atravez de mil aspectos e vicissitudes, era certo que, pela experiencia das revoluções e contra-revoluções succedendo-se durante um largo periodo, preponderava então nos homens publicos mais reflectidos e a todos os respeitos mais capazes o pensamento de que, se a revolução tinha muito de justo, o passado tinha tambem não pouco de essencial á boa fortuna das comunidades humanas. E conjunctamente o povo, nada sensivel ao encanto de principios abstractos, cuja harmonia tanto captiva os poetas e os philosophos e tão facilmente os induz a afastar-se da realidade, expondo-os ás dôres da desillusão, o povo favorecia as inclinações dos chefes politicos. Sendo a victima mais flagellada das disputas revolucionarias, cansado de guerras interminaveis, inquietações permanentes e fomes prolongadas, queria a tranquillidade a todo o custo. O melhor governo, para elle, seria então, como hoje, aquelle que lhe deixasse os filhos para o trabalho e não lh'os pedisse para as chacinas dos exercitos, e que lhe permittisse comer em socego o pão amassado com o suor do rosto. IV Pelas proximidades de 1830, a França, na anciedade de descobrir formulas politicas que lhe dessem riqueza e paz, inclinára-se, consciente ou instinctivamente, ás doutrinas de Montesquieu; ia reconhecendo pela imposição dos factos que o clima, a raça, a situação geographica, e sobretudo as tradições historicas de cada nação são forças activas e invenciveis no modo de ser politico dos povos. Ás abstracções da revolução oppozera-se a ideia de patria e o sentimento nacional, differenciando e limitando, e dividindo o mappa do mundo em circumscripções diversas de caracter e d'interesses. Ai da fraternidade dos povos! Descobriram-se razões para justificar o egoismo das collectividades. Mas tambem, em meio da fortuna varia do liberalismo e da reacção, atravez de periodos longos de dictadura e absolutismo, firmára-se a confiança em moldes novos de constituição politica; acceitava-se em principio a igualdade dos homens e em larga escala se traduzia nas leis civis e politicas, assentes d'ora avante em bases juridicas repassadas de philosophia do liberalismo humanitario. O compromisso entre o passado e o futuro, entre os factos e as aspirações, ia estabelecer-se por uma partilha de dominio, o mais das vezes arbitraria, que era uma tregua e não uma solução do conflicto. Em Portugal seguira-se caminho parallelo ao que em França conduzira n'essa epoca á monarchia constitucional,--bem entendido, n'aquella reducção e larga distancia que nos designava o grau da nossa civilisação comparada com a civilisação franceza. Tambem nós haviamos conhecido os esplendores e decadencia do regimen absoluto, a fome e miseria que a sua corrupção importára, egoismos sordidos e imbecis de padres e reis e aviltamento das plebes trabalhadoras na servidão e na lisonja, illusões breves do doutrinarismo liberal e a reacção immediata a poder de forca e enxovia, luctas civis, e finalmente a victoria dos partidos revolucionarios, desenganando do que o passado não podia subsistir tal qual fôra e estava irremediavelmente condemnado perante novas aspirações. Em 1836, quando o exito de sacrificios prolongados e batalhas sangrentas assegurou o dominio dos liberaes, tudo nos conduzia a adoptar a forma do governo estabelecida em França, seguindo-a passo a passo, nós que de resto, então e depois, nunca procurámos nem tivemos outro modelo e mestre, embora sempre lhe comprehendessemos mal as lições e não raro deixassemos cair a imitação em aleijões. Não temos de que nos surprehender quando em 1837 encontramos José Estevão, eleito deputado pela primeira vez, a fazer na camara a sua profissão de fé n'estes termos: «Eu amo os thronos, porque vejo n'elles um principio innocente na organisação social, julgo que todos os damnos que teem feito não vem d'elles, mas do modo de os constituir, do erro de os cercar de direitos terriveis que lhes são funestos». Este respeito da constituição historica, temperada pela insinuação dos novos principios philosophicos, acompanhal-o-á em toda a carreira politica, corrigindo com igual firmeza, invariavel, os impetos demolidores e as resistencias d'uma reacção obtusa e hirta, incapaz por natureza de sair das formas mortas em que se refugiava. Em 1839, definindo e justificando a sua attitude, dizia: «Eu sou um homem de principios; reputo em muito valor este meu brazão: n'elle se cifra todo o meu orgulho. Para os homens de principios ha uma grande vantagem, n'elles a ambição não é um vicio mas um pensamento, não é ambição pessoal, mas é desejo sensato de os vêr triumphar. Eu sou um homem de principios, (repito) mas reconheço que todos os principios estão sujeitos ás conveniencias publicas, e que todo o homem que tem principios entende que é do interesse d'elles submetter-se prudentemente ás circumstancias sem deslumbre de sua posição». E em outra passagem esclarecia assim o conceito: «Qualquer doutrina, por mais justa que seja, sendo invariavelmente seguida nos negocios publicos, ha-de dar pessimos resultados e comprometter as suas proprias exigencias; ha-de assassinar a moral em nome da moral, e sacrificar a palavras a prosperidade publica; tal doutrina importaria uma oppressão tyranica sobre os factos, sobre os homens e sobre as cousas; seria finalmente um fatalismo politico, mil vezes mais pernicioso que o fatalismo philosophico». Onze annos depois, discutindo no parlamento o censo eleitoral, de novo reconhecia a impraticabilidade e utopia do radicalismo, ou reaccionario ou reformador: «O congresso sabe que eu sou partidario do voto universal; o voto universal é um grande principio, é uma grande esperança, é base de todo o futuro europeu, base em que vão parar todas as constituições, senão pelo seu estado politico, ao menos pelo seu estado economico: é impossivel recuar da tendencia que levam esses principios, pela connexão entre o estado economico da Europa e o seu estado politico. Sr. presidente, nós somos fanaticos do presente e do futuro, somos por isso utopistas; e os que são fanaticos do passado são tão utopistas como nós, porque o são tanto os que pretendem a realisação d'uma lei que os tempos mesmo ainda tornam impossivel de realisar, como aquelles que esperam se torne a realisar uma que os tempos já condemnaram ao esquecimento». Esta concepção do equilibrio politico, radical n'uma base historica, e historico n'uma ideia de desenvolvimento progressivo, este pensamento de conservação e progresso em permanente conjugação das actividades e tendencias proprias dos elementos concorrentes, o criterio evolucionista, como hoje se diria, seguirá José Estevão em toda a conjunctura politica, desde a profissão de fé do moço vidente, exaltado em esperanças de dar a felicidade aos povos, até ao parlamentar desilludido pelo commercio dos homens e pelo espectaculo das suas fraquezas. Em 1857 renova as affirmações anteriores, julgando que «a regeneração foi uma correcção prestadia á politica desmasiadamente theorica de todas as administrações passadas». Nem sequer em momentos de suprema e divina elevação, como foi esse do discurso sobre o apresamento da barca _Charles et George_, deixou de condemnar o absolutismo no governo, fosse qual fosse a forma que revestisse, tradicionalista inflexivel ou reformista intransigente. «Um governo que por honra de familia», dizia então, «por influxo de datas, em virtude de recomendações testamentarias, haja forçosamente de ter certas ideias, certos principios, certas aprehensões, certas tendencias, conservar os mesmos amigos, repellir os mesmos inimigos, e tudo isto sejam quaes forem as epocas, as conjuncturas, as necessidades publicas, não é governo, é um absurdo, um devaneio; uma especie de pyrrhonismo politico. Um governo d'estes não tem pensamento nem acção sua: é um verdadeiro automato; os seus actos são determinados por principios alheios á sua vontade, marcados, numerados e classificados: um governo d'estes não se abalança a andar, sem estar certo de que vae pela estrada por onde foram os seus augustos avós. Pára onde elles pararam, e treme d'ir mais longe do que elles foram. Ora um governo na epoca actual deve ser sobretudo maneavel, facil e prompto em movimentos e capaz de os executar em todos os sentidos e direcções». Ainda poucos mezes antes da sua morte, José Estevão sustentava a mesma regra de governo, crendo e confessando que sómente seria efficaz a politica que procedesse attribuindo valor igual á tradição e ao progresso, á inteireza dos principios e ás condições do momento; considerava «que ha em todos os partidos um principio decisivo--são as opiniões fortes, formaes, sem transacção, sem composição, as opiniões absolutas, que não consideram o estado bem regido sem que ellas triumphem completamente. E a par d'este principio ha outro que avalia essas mesmas opiniões absolutas, que julga da sua applicação ás circunstancias dos tempos, que as qualifica de proprias ou improprias, e que modera a sua acção e as torna praticaveis». A experiencia das revoluções europeias, já longa n'esta epoca, acautelava José Estevão contra os perigos de toda a rigidez logica em materia politica, e sem duvida previa e temia no radicalismo «as consequencias que até agora, por desgraça, teem levado a democracia de irritação em irritação, de desconfiança em desconfiança, d'opção em opção, de ensaios em ensaios, a acabar desgraçadamente em dictaduras, umas vezes grandiosas, outras vezes desastrosas»[3]. [3] Sessão de 30 d'abril de 1856, _Discurso acêrca do caminho de ferro._ Foi em doutrina e na pratica um moderado, avêsso por caracter a excessos, e por ponderação d'espirito contrario a extremos, respeitando o passado e a ordem existente e tomando-o por valor essencial, sem prejuizo todavia da crença na belleza da nova ordem e nos principios revolucionarios, não perdendo opportunidade de os insinuar e applicar com zelo e paixão onde podessem ter logar efficazmente, em hora propria para uma applicação adequada, feliz e duradoura. A questão da admissão das irmãs da caridade, debatida no parlamento com ardor, mostrou-nos José Estevão confirmando em materia religiosa o seu modo de ser politico, porventura accentuando ahi mais claramente do que em qualquer outro campo a confiança nos principios tradicionaes da constituição social das nações da Europa occidental. Para elle, a historia e os seus incitamentos eram uma bussola cujas indicações não podiamos deixar de seguir sem grave risco, porque «assim como a religião é um elemento indispensavel de disciplina moral, a historia é um elemento indispensavel de disciplina politica». Indispensavel, note-se o termo. A negação do doutrinarismo abstracto não póde ser mais cathegorica. Não queria as irmãs de caridade, porque significavam «uma violação das leis do reino, d'aquellas que haviam levado ao throno a dynastia da senhora D. Maria II, que teve sempre um instincto finissimo, instincto feminino, dos principios sobre que repousava a sua dynastia; porque nunca capitulou, dentro da esphera do poder e das sympathias, com aquellas invasões surrateiras do poder ecclesiastico, que para ella eram suspeitas de ser contrarias ao governo representativo». «Respeitemos estas leis», dizia, «porque vivemos por ellas; são as nossas leis, são o nosso coração, são a nossa vida, são a nossa historia... Com essas leis no pensamento entramos sete mil perseguidos, sete mil expatriados, n'uma cidade que tinha mais do que nós essas leis no pensamento, porque tinha visto n'essas congregações religiosas os instigadores e conselheiros d'uma tyrannia nefanda; porque tinha visto sair d'essas casas ou corporações religiosas cohortes de testemunhas falsas, que tinham ido aos tribunaes levantar com os processos judiciaes os patibulos d'onde deviam cair as cabeças d'aquelles que ellas tinham marcado como nefastos ao seu predominio... É preciso que nos convençamos de que não podemos salvar os objectos que veneramos, se não reunirmos todas as nossas forças constitucionaes e moraes para desfazermos e contrariarmos as intrigas e embustes, pelos quaes se quer repôr outra vêz no seu throno e predominio estas instituições, que nós combatemos, destruimos e desfizémos». Receiava que aquellas instituições, «pelas riquezas e influencias das familias, se tornassem nefastas aos poderes do estado e ao exercicio das liberdades publicas». Depois, além dos perigos do espirito catholico congreganista, adverso aos principios liberaes e por isso carecendo de ser vigiado de perto, porque as irmãs de caridade eram «uma emanação do espirito jesuitico, e em volta d'essa congregação se juntaram todas as ideias que ficaram desbaratadas e destruidas pela perseguição que se fez a essa instituição», vinham os inconvenientes da forma e apparencias da sua vida e missão, vinham problemas propriamente moraes e religiosos, sobrepondo-se ás relações politicas das communidades em discussão. «A religiosidade, no sentido que lhe dão os theologos, não dispensa o culto externo; e o culto externo das irmãs de caridade é pouco consentaneo com as formas, com os costumes e com as prevenções da auctoridade civil». Sem embargo, «as irmãs de caridade são uma boa instituição», julgava o tribuno. Mas podiam «prejudicar o paiz... podiam influir no sentimento publico, podiam offender a caridade particular, podiam quebrar o nexo que liga as pessoas votadas a fazer o bem, podiam ser um vehiculo d'indisposições, podiam tolher a liberdade d'acção do governo do paiz, emfim podiam trazer mil inconvenientes que era mistér evitar». Por isso as combatia, sem quebra do respeito que lhes votava e tinha por merecido, dizendo: «Eu venero e respeito a instituição das irmãs de caridade, venero os preconceitos d'onde ella nasce, respeito as ideias erroneas que a sustentam». Sómente achava que era «exaggerada e desnecessaria», pois, para realisar a missão d'aquelles institutos, «temos duas associações, uma religiosa e outra natural; temos a parochia e a familia. Para que havemos de entrar na questão escolastica da intelligencia dos velhos estatutos, nem pôr em comparação diversas escolas de caridade? Associemo-nos todos, cada um na sua parochia; o chefe de familia para vigiar, regular e acompanhar os actos de caridade dos differentes membros da sua familia, e o parocho para ser o nucleo religioso, o conselheiro, o orador, emfim o laço da caridade humana com a caridade divina». E parallelamente, quanto ao ensino, queria «um ensino publico e religioso que fosse pago pelo estado e vigiado pela auctoridade civil», admittindo «o ensino livre emanado dos poderes civis, acompanhado da instrucção religiosa, mas da instrucção dada pelo clero portuguez». A taes compromissos o obrigava o espirito da epoca, todo de atenuações e concessões. Á monarchia constitucional, partilha de soberania entre o rei por direito de herança e o povo por direito natural, tinha de corresponder, na ordem religiosa, a religião do estado, systema de concordatas e beneplacitos entre soberanias de differente origem, com poderes civis dando attribuições ecclesiasticas e poderes ecclesiasticos sanccionando determinações dos poderes civis e intervindo nos seus actos. Mais uma vez vencia no espirito de José Estevão a força da tradição. Atravez de todas as considerações, queria salvar e salvava a qualidade de catholico, confessando-a e justificando-a com uma firmeza viril. «Snr. presidente», dizia na camara dos deputados, na sessão de 9 de julho de 1861, «eu sou catholico e admitto que todos os theologos regulares ou irregulares, leigos ou não leigos, inquiram os quilates da minha religião, a sinceridade das minhas crenças; mas, se fizerem iguaes inquirições das suas, hão-de reconhecer que ha uma razão suprema que suppre a escolha impossivel n'este assumpto de religião. Esta razão suprema que suppre a escolha da religião é a tradição da familia, porque o homem, quando vem ao mundo, segue sempre a religião de seus paes. Eu sou catholico, porque meus paes e minha familia eram catholicos; e isto bastava para eu preferir esta a todas as religiões, por mais santa, clara e justa que fosse a sua doutrina. Eu aconselharia sempre que não se dispensasse nunca na escolha da religião a tradição de familia, e que ao dogma religioso se juntasse sempre o dogma de nossos paes; da percepção das verdades supremas podemo-nos desviar ou pela fraqueza ou pelo orgulho, e no meio d'estes desvios a religião da familia é uma garantia, é um principio de fé humana. Se o religioso de bom-senso me perguntasse qual a minha religião, dir-lhe-ia que sou catholico; e qual a razão?--Porque meu pae o era. Respondo assim a todos os theologos, e a todos os esquadrinhadores da minha consciencia». Mas que não haja equivoco sobre a natureza do catholicismo que José Estevão professou, sobre a largueza com que o entendia; não se imagine que foi o servidor de privilegios ou supremacias ecclesiasticas, que quiz o catholicismo como instrumento de reinar ou por qualquer outro motivo que não fosse simplesmente a expressão religiosa, o reconhecimento das relações do homem com a divindade e o culto que d'ahi deriva. Foi elle mesmo que se encarregou de definir o seu catholicismo, quando em 24 de maio de 1862, discorrendo sobre a liberdade do ensino, dizia no parlamento: «Eu sou religioso, catholico apostolico romano. O homem vivo da faculdade de pensar e de sentir. Não o estorvemos a cada passo, não o calumniemos, não o supponham tão indigno que não possa elevar-se nas azas do seu espirito, e librando-se na immensidade procurar por effluvios mysticos o inexplicaveis as relações que existem entre elle e a divindade... Eu sou catholico, repito, segundo os principios em que fui educado, creio em Deus, e elle me deixa crêr e esperar tambem que este seja o melhor de todos os cultos, porque satisfaz as minhas necessidades d'espirito, os desejos do meu coração, e não diz á minha razão nada que repugne ás minhas aspirações. Gosto do catholicismo puro, e não gosto d'este catholicismo philosophado, d'estes enxertos de philosophia; gosto da doutrina pura dos bons doutores, gosto da fé viva, da virtude sã, de muita moral e menos formas. Não quero portanto o catholicismo philosophado (sempre assim fui), nem o catholicismo almiscarado; quero o catholicismo puro, purissimo em todas as suas manifestações, quero-o em toda a parte, fóra da egreja, como na egreja, sem distincção de logar. Em uma palavra, gosto do catholicismo que generalisa a ideia religiosa manifestada em todas as formas, quer doutrinaes quer moraes. Agora, não sei se sou impio. Para o illustre deputado, (_voltando-se para o Sr. Pinto Coelho_) parece-me que o sou. Mas emfim seja o que quizerem, impio ou não impio, isto é o que eu sou». Uma outra razão prendia José Estevão ao catholicismo. Não a confessa, talvez mesmo não a tivesse sentido clara e conscientemente; mas deixou-a bem transparecer e insinuar em todas as suas affirmações sobre esta materia. Era catholico, não podia deixar de o ser, porque, demagogo convicto e ardente, no sentido mais nobre da palavra, as suas tendencias religiosas, como as demais, eram as tendencias do povo que amava com tão exaltada dedicação. Sorriria a toda a sua ingenuidade na poesia e na crença, com aquelle mesmo affecto que o consagrára ao respeito da sua grandeza no trabalho e á defeza dos seus direitos na ordem social e politica. Por isso concebia o catholicismo e queria-lhe, como áquelles nos quaes em toda a singeleza o encontrava; e sympathisava «mais com o catholicismo milagreiro do que com o catholicismo philosophico», e gostava mais «do nosso catholicismo peninsular, salvas as fogueiras, que as houve por muita parte, do que do catholicismo francez, que tem muitos louvores da philosophia mundana, e que lhe parecia mais uma escola philosophica rebocada de religião, do que um gremio verdadeiramente catholico»[4]. [4] _Discurso sobre as irmãs de caridade_, em 9 de julho de 1861. O seu coração nunca se affastava do coração do povo, onde quer que elle batesse. Se sonhou opposição entre o espirito do catholicismo, dogmatico, de obediencia mortal, e a liberdade de pensamento, com as responsabilidades de consciencia respectivas, que iniciava tempos novos, tudo conciliou pelo predominio final da inspiração affectiva sobre a phantasia revolucionaria que promettia paraisos terrestres só pela negação de poderes sobre-humanos, pela abolição do culto, por incendio das imagens e pelo morticinio dos sacerdotes. Do orgulho que por certo o incitaria a decidir exclusivamente pelo proprio entendimento e a crêr na razão, abdicou, consciente e reflectidamente, na experiencia e na fé dos que haviam vivido antes d'elle e lhe tinham dado o sêr, e na poesia candida da alma popular. A logica cedeu ao amor; e o amor, que sempre o movia, quebrava-lhe aqui quaesquer veleidades de destruição. V A revolução franceza, cujos evangelhos o liberalismo portuguez seguia, sem muito discriminar nem a sua conveniencia para a situação historica nacional nem mesmo as consequencias de diversa natureza que cedo começou a produzir nos paizes d'origem, importava, na multiplicidade dos seus aspectos e resultados, uma transformação economica formidavel, além de transformações religiosas, politicas e muitas outras. A fermentação economica do seculo XVIII em França coincidiu, se é que não a precedeu, com a fermentação politica; o exame das relações economicas do individuo e do estado e das diversas classes entre si mostrou não menos funda desgraça do que aquella que se atribuia ao absolutismo dos reis e da egreja. A revolução não podia limitar-se a capricho; tinha de renovar toda a organisação moral e juridica das sociedades e dos homens. Desde que no seculo XVI um grande movimento do espirito humano, lentamente elaborado em seculos de meditação e na prolongada atribulação dramatica das consciencias sedentas de verdade, veio abalar a constituição intima e a manifestação externa do pensamento, legitimando a duvida e a discussão das relações do homem com Deus, ferindo crenças até então sagradas, intangiveis; desde que essa tendencia se revelou e cresceu em extensão e intensidade, chegaria um dia, evidentemente, em que igual liberdade tinha de conceder-se, por maioria de razão, para discutir as relações dos homens entre si em todos os modos e formas do commercio humano, e para averiguar, portanto, por que motivos e com que direito e auctoridade uns mandavam e outros obedeciam, uns eram ricos e viviam na opulencia e outros eram pobres e se arrastavam indigentes. Muito cedo, logo no principio do seculo XVIII, os systemas de liberdade economica nascidos na Inglaterra passaram ao continente e viéram encontrar em França apostolos eminentes. A pobreza das povoações ruraes, o peso oppressivo e desigual dos impostos, a ruina das finanças publicas, protestavam contra a organisação vigente e demandavam uma profunda reforma. Os escriptos de Boisguillebert, que votou ao estudo d'esses problemas um talento notavel, traduziram desejos de novo rumo e desvendaram o descredito irreparavel do systema existente. Condemnando toda a regulamentação arbitraria do commercio interno e externo; insistindo em que a riqueza nacional não depende dos governos, cuja interferencia faz mais mal do que bem, em que as leis naturaes da ordem economica das cousas não pódem ser violadas ou desprezadas impunemente e os interesses das differentes classes da sociedade, n'um systema de liberdade, são conformes, e os interesses do individuo coincidem com os do estado; reclamando igual solidariedade para as differentes nações entre si, e crendo que d'este modo de considerar os homens e os povos resultaria a paz e a harmonia; dividindo os homens em duas classes, a dos que nada fazem e tudo gozam e a dos que trabalham desde manhã até á noite sem conseguir ganhar a simples subsistencia; inclinado a favorecer estes ultimos por todo o modo e procurando corrigir as desigualdades nefastas de que os impostos andavam eivados:--Boisguillebert não estava longe das doutrinas de liberdade economica que prevaleceram no segundo quartel do seculo XIX. Respirava-se já alli a atmosphera que, expandindo-se atravez de mil luctas, veio a embeber a politica economica da maioria das nações da Europa. A economia politica, tal qual os mestres a traçavam depois de 1820 e os politicos a confirmavam com enthusiasmo, subordinando-lhe as leis do estado, seria cousa tão simples como fertil em beneficios. Libertassem o individuo das peias do antigo regimen, dos estorvos d'um systema complicado de direitos e obrigações, déssem-lhe liberdade até á pulverisação completa das massas sociaes, dispersas em atomos d'um movimento uniforme, e ia surgir um mundo todo de harmonia perfeita; porque, procurando cada um o seu interesse pessoal, no fim todos os interesses se sommavam e encontravam satisfeitos e, por conseguinte, a felicidade era plena. Do cáos sairia a ordem. Quanto mais liberdade, melhor; deixassem os proprietarios, os rendeiros, os operarios, os capitalistas e os commerciantes debater livremente os seus interesses, e cada um receberia a justa recompensa do seu trabalho, da sua capacidade e dos seus bens. Quanto mais viva e geral fosse a concorrencia, mais cedo se alcançaria o equilibrio. Eram d'esperar crises, perturbações, miserias, desastres e lamentos na fundação do novo regimen; mas, asseguravam-nol-o os economistas, tudo isso, mal transitorio resgatado por beneficios incalculaveis, havia de sanar-se para fortuna dos homens pelo simples jogo das forças em confronto. Quando se houvesse varrido o campo de todos os obstaculos legaes e moraes da concorrencia,--regulamentos, prejuizos, sentimentos, ignorancia, sujeições de toda a casta,--a paz, a abundancia e a equidade viriam naturalmente dos atomos libertos, guiados sómente pelo interesse egoista. Assim se fez. Veio a liberdade; diversas nações a experimentaram, sobretudo a Inglaterra. E a miseria que de tal systema resultou ou, melhor, a miseria que uma tal ausencia de systema determinou, ficou memoravel nos annaes da humanidade. A nova ordem foi o triumpho completo da burguezia capitalista. Admiravelmente servida nos seus fins pela revolução mecanica da industria que, d'invenção em invenção, condemnava processos antiquados de producção, deixando a pedir esmola os que os usavam e d'ahi tiravam o pão de cada dia, e conferindo um poder sem limites a quem tivesse capital bastante para montar a fabrica moderna; favorecida pela lei, liberalissima, que lhe permittia explorar á sua vontade o trabalho, acceitando-o ou regeitando-o ou reduzindo-o a seu capricho, tratando o salario como materia prima insensivel e morta, com o mesmo calculo e frieza que empenhava na construcção da officina e na determinação da força motriz respectiva: a burguezia tirou um imperio crudelissimo da famosa liberdade que os philosophos offereciam como o resgate das angustias d'outro tempo. Medrava o capitalismo, e ao lado da sua grandeza alastravam-se em proporção crescente as plebes famintas. O povo, na revolução, julgava ter vencido e haver-se emancipado; e descobria agora, com espanto e angustia, que apenas collaborára n'uma transferencia de dominio, na creação de novos despotas. Esforçando-se pela victoria da burguezia e applaudindo-a, preparára para si uma tyrannia mais desapiedada do que aquella em que o feudalismo, a aristocracia territorial e as dependencias corporativas o haviam tido por tantos annos. A burguezia, invocando a eminencia e beneficios da liberdade, apoiada no doutrinarismo utilitario, seu fiel companheiro e filho legitimo, arrogou-se o direito, que larga e funestamente exerceu, de explorar e escravisar o trabalho alheio, isentando-se ao mesmo tempo em absoluto da caridade e auxilio que no antigo regimen prendiam o servo da gleba e o seu senhor, e riscando das obrigações moraes o que já estava abolido nas relações juridicas, os laços de protecção e solidariedade, o nexo poderoso da consciencia do interesse commum que, emquanto exigia serviços, logo impunha, por necessidade indeclinavel, deveres de patronato. A revolta não tardou, aterradora, manifestando-se em tumultos de multidões ameaçadoras, e interpretada na esphera do pensamento especulativo por homens de genio, como foi Carlyle. Era certo que a abolição dos monopolios e privilegios déra liberdade ao capital para exercer, em seu proveito, summa pressão sobre o trabalho. Era certo que, em virtude d'isso, o capital em breve se mostrou o poder dominante da sociedade, regida por um utilitarismo brutal e governada por uma burguezia infinitamente mais nociva ás reivindicações democraticas do que as antigas aristocracias, com maior riqueza e maior força, incitada por cobiças ardentes, plebeias, soffregas, e pela energia de gerações robustas, violenta no arrojo e nos processos, por completo desprendida da sujeição moral d'outros tempos, que suavisava as relações entre servo e senhor, considerando-os unidos por vinculos de familia. Perante o triumpho capitalista de 1830, definia-se, porém, no proletariado, que elle creára, a consciencia da propria situação. Da exploração vieram miserias; das miserias a dôr e a revolta; e o instincto, que não erra, determinava a associação dos opprimidos, para melhor defeza. Assim se fortalecia um terceiro estado que, reconhecendo-se escravo e soffrendo as amarguras da sua condição, amaldiçoava, de punhos cerrados e flamejando coleras, o systema que o trazia subjugado sob tão insensiveis tyrannias. Vagamente, começa a entrevêr-se a restauração, em novas bases, da ordem tradicional. Far-se-ia agora em beneficio dos trabalhadores o que algum dia se inventára em proveito do feudalismo. Havia de renovar-se, pois era essencial á nação inteira, á tranquillidade dos grandes e á prosperidade dos pequenos, a traducção efficaz da solidariedade das classes nas instituições politicas e sociaes, que se via arruinada e banida por um individualismo soberano e anarchico, sem repressão nem regra. A ostentação d'essa ferocidade barbara, substituindo a salutar concepção historica da communidade d'obrigações e deveres pelo ajuntamento desconnexo d'unidades cuja lei unica, exclusiva, era a expansão e imposição do proprio egoismo, sem outro limite além d'aquelle a que os egoismos alheios por seu turno o coagissem, avolumava de hora a hora um tremendo movimento de reacção. Dos proletarios communicava-se á pequena burguezia que, sentindo a pressão do capitalismo e por elle expropriada tambem, vinha encorporar-se nos bandos das victimas do monstro insaciavel. E ao clamor do povo juntava-se a reflexão dos pensadores, excitada pela piedade, resultando em que a erupção individualista, assoladora, era temida e combatida ao mesmo tempo pelos indigentes que produzia, e pela razão e pela justiça a que repugnava. Significava a preterição de toda a vida moral e da caridade christã e uma perigosa incerteza politica; de continuo trazia abalada a estabilidade dos governos o da propria fortuna particular. Ninguem se encontrava tranquillo e satisfeito. Uns tinham fome; outros traziam turvada a consciencia. Nem talvez os proprios despotas que o liberalismo utilitario cevava e enthronisava, andariam de todo contentes; naturalmente, quereriam igual mantença de ambições e menos risco da pessoa e bens, ameaçados d'assassinio e incendio. Esta reacção era todavia vága, confusa, um perpetuo rugir de condemnados, gritos de desgraça e cantos mysteriosos d'esperanças, conflictos de crenças. Vinha longe aquella clareza de intuição e proposito em que o socialismo moderno se definiu. A democracia começara por ser negativa, antes de ser constructiva. Porventura Voltaire e Rousseau tinham resumido duas correntes que, embora contemporaneas na origem, haviam de ser successivas nos effeitos. A primeira involvia a negação religiosa; a segunda, tendo por base a justiça, carecia de se apoiar em sentimentos idealistas. Uma destróe; a outra reedifica. Ora ainda a destruição não estava consumada, e já a necessidade de reconstruir se mostrava urgente. Entre a concepção do problema politico, como destruição, e a concepção do problema social, como organisação, medeiava apenas meio seculo que, apezar de revoluções incessantes, não lográra varrer o terreno do passado para o deixar amplo ás edificações futuras. D'ahi vinha que simultaneamente procuravam vingar duas ideias de progresso quasi antagonicas, uma que não conseguira vencer completamente, que ainda não derrubára tudo o que se havia proposto derrubar, e a outra que, ganhando entretanto consciencia da sua razão de ser, reclamava uma constituição social que por momentos era ou parecia a regressão ao passado. A confusão poderia ser de facil desenlace para os doutrinarios; para um politico era temerosa[5]. [5] Hoje tornou-se clara e corrente a interpretação d'estes factos. Mas, para mostrar que labyrintho representaria no tempo de José Estevão, bastará lembrar que, quando Oliveira Martins pela primeira vez a fez magistralmente no _Portugal Contemporaneo_, com relação á nossa historia politica, ainda então muito bons espiritos lhe desconheceram a exactidão. E a muitos pareceu um reaccionario, miguelista, porque não commungava na furia liberalista de deitar abaixo; a outros se afigurou blasphemo e sacrilego, a cuspir censuras, quando apenas apontava erros e fraquezas de glorias consagradas; e para outros não merecia confiança, ia para o rol dos utopistas e incomprehensiveis, porque não se emendára d'aquelle socialismo dos bons tempos que partilhou com Anthero de Quental. Não que o systema fosse incompleto. O utilitarismo individualista tinha a liberdade e a concorrencia para darem riqueza, felicidade e harmonia; mas, onde por acaso houvesse deficiencia, onde as miserias tivessem escapado aos beneficios do desafogado embate dos interesses, lá estava a philantropia para acudir a desgraças. Simplesmente acontecia que a avidez dos interesses nunca faltava, calcando e esmagando quem lhe ficava no caminho, e a philantropia apparecia raro, e sempre mal provida, a soccorrer as victimas cujos gemidos formavam um côro a todos os respeitos sombrio e pungente. E começaram então os philosophos, os politicos, os pensadores e os crentes, todos aquelles que pelo espirito ou pelo coração sentiam a desordem e a crueldade, os que a temiam como um perigo para a prosperidade das nações e os que a choravam como um aggravo a eternas e impreteriveis leis moraes, começaram então a procurar um outro systema de reger os povos, no qual a equidade e a justiça, em vez de serem devoção, passassem a ser obrigação e direito, efficazmente reconhecidas nas leis do estado e nas prescripções juridicas. José Estevão viu os tempos heroicos do socialismo, a aurora d'esse sonho admiravel no mundo activo, a derrota dos seus paladinos, passados todos, com sobranceria e desprezo, ao livro das inutilidades perigosas pela burguezia triumphante e pelos seus prophetas. Viu a cegueira e desastres dos tempos d'iniciação, e viu tambem que, mal succumbiam os vencidos, logo outros soldados surgiam a combater, cada vez mais numerosos; qualquer cousa de novo se affirmava irreductivel, com que a politica e a democracia tinham a contar. O periodo de 1830 a 1850 foi notavel para o adeantamento e definição da concepção socialista do estado. A evidencia dos factos obrigava a attender ao que ha muito vinha sendo apregoado por almas d'eleição e verdadeiros videntes, e fôra tido por phantasia de poetas. A estrella do puro liberalismo declinava entre maldições de trabalhadores famintos. Proudhon, o demolidor terrivel de tantos altares consagrados do liberalismo, nasceu poucos mezes antes e morreu dois annos depois de José Estevão. Pôde este assistir ao exame do capitalismo, que aterrava e horrorisava os corypheus das escolas individualistas. _Da Justiça na Revolução e na Egreja_, o _Systema das Contradicções Economicas ou Philosophia da Miseria_, a affirmação de que «a propriedade é um roubo», esses anathemas d'um mundo d'oppressão, em que o rebelde precedia Karl Marx, na critica da propriedade e na analyse do capitalismo, e se anticipa a Bakounine no repudio da auctoridade e na exigencia d'uma liberdade perfeita, são do tempo de José Estevão, e por elle teriam sido ouvidos de perto, emigrado como esteve em França nos annos que immediatamente precederam a revolução de 1848. Pôde ver mais, pôde ver Proudhon absolvido, quando foi chamado aos tribunaes por causa do _Aviso aos Proprietarios_, porque, pretendia a sentença, «se encontrava numa esphera d'ideias inaccessivel ao vulgo»; e, embora mais tarde, pela _Justiça na Revolução e na Egreja_ fosse condemnado a tres annos de prisão, sempre é certo que, por um rapido momento, os proprios magistrados da lei estatuida tributavam respeito á nova fé, apregoada com indomavel ardor pelo apostolo. Proudhon era porém apenas o demolidor eloquente e violento. Anteriormente e simultaneamente, outros esboçavam a cidade futura. Roberto Owen[6] , Saint Simon[7] e Fourier[8]. todos haviam já formado e apregoado com exaltação, partilhada por numerosos sectarios e martyres, systemas de relações sociaes muito differentes d'aquelles deshumanamente liberrimos sobre que a burguezia fundára uma tyrania sem precedentes. [6] 1771-1858. [7] 1760-1825. [8] 1772-1837. Roberto Owen defendêra e tentára uma organisação social baseiada na cooperação, oppondo-a á anarchia selvagem da concorrencia commercial desenfreiada do periodo primitivo do capitalismo, e propondo o seu plano de «aldeias d'unidade e cooperação», nas quaes os empregados se juntariam em communidades autonomas, onde mutuamente se sustentavam pelo producto dos seus diversos trabalhos. D'experiencia em experiencia, d'estudo em estudo, convencera-se de que os grandes males das sociedades eram na sua essencia de natureza economica e acabava pregando a pura doutrina socialista,--que o povo nunca será senhor dos seus direitos, emquanto não possuir as officinas e os campos, não em propriedade particular mas em propriedade collectiva, estabelecida em bem da communidade. «Declaro perante o mundo», escreveu, «que, até hoje, o homem tem sido o escravo d'uma trindade monstruosa: a propriedade particular, os systemas religiosos irracionaes e infantis, e, finalmente, o casamento». Saint-Simon, representando uma vigorosa reacção contra os excessos doutrinarios do seculo XVIII, que lucidamente considerou um periodo de critica e dissolução, ao qual tinha de oppôr-se no seculo XIX uma epoca d'organisação, viu como seria insufficiente a destruição do passado, que aliás não amava, se ella se limitasse a mudanças da forma do governo, sem alterar as demais condições religiosas, moraes e economicas de que dependia a felicidade dos homens. E, comprehendendo a inanidade da revolução propriamente politica, desenganado pelos acontecimentos, de que em França era testemunha, inventava uma aristocracia de homens capazes para governar as nações, abolia o direito de successão na propriedade, estabelecia condições de iniciação na vida iguaes para todos, reclamando que «os instrumentos do trabalho, terra e capital, fossem possuidos pelos membros unidos da sociedade», e sonhava o estado perfeito, a communidade em que os mais aptos tivessem todo o poder e uma parte ampla do producto, procedendo de modo a que o estado trabalhasse para melhorar a condição material e moral dos mais pobres. Seguia-o de perto Fourier, embora se imaginasse longe[9]. Descobrindo no homem a paixão do _uniteismo_, que significava a tendencia natural dos homens a juntarem-se em grupos sociaes e trabalharem juntos pelo bem commum, em vez de combaterem entre si tomando para regra moral e lei um systema de disputa, tirava d'ahi a sua famosa «phalange» ou unidade social, de que muitos se riram mas que, apóz varia sorte e criticas de todo o genero, hoje se verifica ter proximo parentesco com a concepção moderna da municipalidade socialista. Esses planos, que pareceram phantasia d'um sonhador generoso, modificaram-se e completaram-se; e hoje não será desacerto tel-os como simples antecipação de formas de vida social, que em muitos paizes se vão experimentando e propagando, com não pequena vantagem e efficacia na boa ordem das sociedades. [9] Fourier, referindo-se a Owen e Saint-Simon, acautelava o leitor contra os «laços e charlatanismo das duas seitas», não considerando as affinidades manifestas da «cidade» de Owen e da aristocracia de Saint-Simon com as suas proprias aspirações, que consistiam na organisação da industria do modo mais conveniente aos interesses collectivos. Todos tres partiam d'um principio--a producção da riqueza em beneficio da communidade. Tudo isso, porém, que foi muito na evolução da democracia e na definição, inevitavelmente lenta, das suas necessidades e aspirações, foi muito pouco perante um facto de maior alcance, que José Estevão teria observado e ponderado, devendo encontral-o na edade de maior energia politica. Por certo não lhe escaparam nem a apreciação da sua essencia nem, muito menos, a previsão das consequencias larguissimas que virtualmente importava. 1839 e os annos que se lhe seguiram até 1848, marcam na historia do socialismo uma epoca notabilissima, a passagem do socialismo utopista e negativo ás reclamações positivas e cathegoricas d'um programma de governo. Em 1839 publicou Luiz Blanc a _Organisação do Trabalho_. D'ahi podemos datar uma era nova. Para os interesses das grandes massas trabalhadoras, estava julgada a esterilidade do reinado dos Bourbons, da convenção, da republica, da dictadura, do consulado, do imperio e depois ainda da restauração monarchica. Quasi meio seculo d'experiencias revolucionarias e reformadoras concluia, na meditação do pensador politico, pela necessidade de inscrever entre os deveres primordiaes do estado a garantia de trabalho regular a todo o cidadão. Como consequencia directa, immediata, o trabalho tinha de ser organisado sob a direcção do estado--granjas para os lavradores, fabricas para os operarios e armazens para os commerciantes, convertidos em propriedade sua, do estado, todos os grandes instrumentos de riqueza, os canaes, as minas, as grandes industrias e os bancos. As associações cooperativas, que Fourier e Owen deixavam á iniciativa e bom senso particular, passava-as Luiz Blanc a encargo do estado. As «officinas sociaes» do grande reformador foram talvez uma das mais claras antecipações da constituição do estado socialista. «Pedimos a communidade dos trabalhadores», escrevia elle em 1840, resumindo as reclamações revolucionarias, «isto é, desejamos abolir o commercio dos homens no trabalho dos homens, e, em vez d'isso, estabelecer officinas nacionaes em que a riqueza produzida se reparta entre os trabalhadores e não haja mais servos nem senhores». Estava fundado o socialismo como elemento politico e força activa, com direitos exigiveis e exigidos na constituição social das nações, nos seus costumes, e sobretudo nas suas leis. Fossem quaes fossem os desastres das primeiras tentativas, o socialismo passára, d'uma vez para sempre, das dissertações especulativas, em que a compaixão de suppostos visionarios o concebeu, para as assembleias dos legisladores em que as nações teriam de determinar as condições praticas da sua execução. VI Não era dado ao politico ignorar um movimento de semelhante magnitude, nem o apostolo fervoroso da democracia poderia deixar de o ver com sympathia. E José Estevão sentiu-o profundamente. Outros aspectos da transformação politica do seu tempo lhe teriam offerecido ensejo de maior brilho para a eloquencia e de valoroso esforço para o seu braço. Nenhum todavia lhe despertou do peito palavras mais sublimadamente repassadas d'amor pelo povo e de fé na sua libertação. As victorias da burguezia em Portugal assumiam um caracter muito differente do que tinham na Inglaterra e na França, paizes que nos inspiravam e procuravamos imitar, fazendo-o por desgraça muito mal. Embora a diversidade de condições seja evidente, convém apontal-a n'este ponto e não a esquecer, para uma justa apreciação do pensamento de José Estevão, para avaliarmos até onde podia avançar sem exaggero ou erro, provenientes do desconhecimento das circumstancias proprias do paiz. Não havia para nós questão das grandes industrias nem a sua cauda obrigada de proletarios; nem a pobreza da nação a consentia, nem tão pouco a sua iniciativa e inventiva em materia de transformação mecanica a provocava. Debalde procurariamos qualquer cousa que se assemelhasse á ruina dos teares manuaes e á conversão da officina domestica em grande fabrica, pondo d'um golpe milhares de familias na indigencia ou, pelo menos, na dependencia anonyma, sem dó nem piedade, de gigantes capitalistas terriveis e phantasticos, que se não viam e todavia tudo ordenavam; debalde esperariamos as multidões amotinadas que a desgraça recrutou e desvairou em odios e ameaças. A exiguidade de forças economicas livrar-nos-ia das tormentas que a abundancia levantava entre os poderosos do mundo industrial. Mas nem por isso deixavamos de sentir a repercussão do movimento, amesquinhado e aviltado pelo atrazo e miseria nacional; nem por isso, por sermos pobres e incultos, deixavamos de vêr a burguezia triumphante, a substituição de classes no governo politico, na posse dos bens e em toda a extensão do dominio social, o clero e a aristocracia, ha pouco senhores absolutos da nação, preteridos e excluidos por seus antigos dependentes e por homens vindos de profissões até então alheias aos encargos e honras de mandar nas cousas publicas. Á falta de fabricas que explorassem o trabalho humano e o reduzissem a pura mercancia, tinhamos a usura a cevar-se na ruina dos que pela nova ordem iam decaindo; e, não havendo grande conquista a fazer nos despojos das classes expropriadas, contentavamos-nos com o assalto aos bens dos conventos e com uma cobiça selvagem de honrarias, julgando que, por transpôr a chaparia das fardas dos fidalgos para as rabonas dos plebeus, isso bastava para que as insignias trouxessem de prompto, a quem as usasse, nobreza e imperio. Tinhamos a questão da terra e dos modos de a possuir e usufruir, os morgados e os foros, libertações que degeneravam em oppressões, emphyteutas que passariam a rendeiros, sem estabilidade, á mercê da incerteza da hora presente, tirando das fadigas muito estrictamente o pão de cada dia, que o resto era para o proprietario ou para o prestamista, ávidos, ricaços de fresca data, destituidos d'aquelle desinteresse e largueza que a diuturnidade da posse dava a antigas linhagens, como um fastio em que andavam saciadas, insensiveis ou indifferentes ao gozo dos bens. Tinhamos uma aristocracia territorial a desfazer-se pelas proprias dissipações e pelas guerras civis, offerecendo presas opimas ás astucias sordidas da avareza. Tinhamos o bandidismo de varia especie que invariavelmente segue as calamidades de toda a sorte, a fome, a peste, a guerra, o incendio e o naufragio. Tinhamos a desordem das finanças do estado, continuamente afflictas por soccorro, um erario faminto, exgotado pelas luctas civis e pela ausencia d'administração proveniente da instabilidade dos governos, facultando assim ao capitalismo estrangeiro e indigena um banquete facil e commodo, permittindo explorar em globo, pelo mecanismo dos impostos e pela coacção concomitante da força publica, o suor de toda a miseria nacional[10]. Tinhamos finalmente, como nas demais nações em conflagração, a questão da repartição e lançamento dos tributos, onde claramente se definiriam todas as tendencias, thermometro seguro, então, agora e em todos os tempos, das iniquidades na distribuição da riqueza entre as diversas classes e da justiça ou injustiça com que entre ellas são julgados os direitos e deveres de cada uma em face do producto do trabalho commum. Se nos faltava uma burguezia industrial opulenta, abundavam os sentimentos que em outros logares a caracterisavam; e aqui tambem, esgravatava-se, ás migalhas, em montes d'esterco, o que algures se apanhava, aos punhados, em montes d'ouro. [10] «A agiotagem tem invadido todas as repartições publicas, e procurando elaquear todos os poderes do estado, já se atreveu a entrar no palacio, e a atacar as prerogativas da corôa, pedindo a conservação de ministros!... Os publicistas dividem os poderes a seu bello prazer, e marcam a sua independencia, como se tivessem sobre elles senhorio absoluto; mas quantas vezes as nomenclaturas e as extremas, que se acham nos livros, se baralham e confundem no trato mundano. _Os poderes_, diz a constituição, "_são o judicial, o legislativo, o executivo, e todos elles são independentes em suas funcções_". A despeito porém d'esta determinação, os acontecimentos, ora roubam a efficacia a taes poderes, ora os reunem em uma só mão, ora os fraccionam e multiplicam, porque o poder é um facto, que subjuga e conquista a vontade da lei e a doutrina dos sabios. Ha entre nós um poder, em que a constituição não falla e para cuja independencia não providenceia; entretanto elle é o maior que conhecemos; refiro-me ao poder agiota. Tem-se elle ligado ao poder legislativo, e esta terrivel accumulação vae-nos sendo fatal. É preciso separal-os, quanto antes.» José Estevão, _Discurso sobre o orçamento do estado_, em sessão de 8 de junho de 1839. Perante esse tumulto de vilanias, José Estevão não descreu todavia de fé individualista. Seguindo a estrella d'altissimos espiritos do seu tempo, esperou tambem da generosidade do coração o termo de males que impensadas liberdades amplamente provocavam. Discutindo o incidente das irmãs de caridade, dizia: «Quantas terras, quantas povoações importantes, quantos centros de população não carecem de hospitaes precisos, não para acudir a epidemias, porque esse é o extraordinario das miserias humanas, mas para acudir ao movimento das doenças ordinarias? E isto emquanto que em outras povoações se accumulam instituições riquissimas, que gastam uma grande parte dos seus rendimentos em faustos, pompas e luxos religiosos, ou se consomem por abusos administrativos de confrarias, aonde não é possivel metter luz, emquanto que em outra parte os doentes agonisam, não faltos de remedios mas faltos d'agasalho! Acontece isto, quando em outra parte a velhice, extenuada pelo resultado do trabalho domestico, pede esmola, sem haver um estabelecimento que lhe abra as portas no ultimo quartel da vida; e quando em outras das nossas povoações vemos chusmas de creanças de ambos os sexos, pedindo a instrucção e o agasalho que se lhes não dá, havendo aliás n'essas povoações casas aparatosissimas, destinadas para tratar outras miserias estabelecidas com o maior luxo, e sem se fazer uma distribuição equitativa da caridade por todas as miserias da vida humana». E em 1839, quando discutia o orçamento do estado, «no seculo em que os agiotas são potentados, no seculo em que as fortunas publicas e dos estados lhes andam nas mãos», segundo a sua propria expressão, tão fiel e exacta pela verdade historica, revoltava-se contra essa preponderancia sordida e seus manejos, dizendo: «Se ellas (as leis da usura) estão revogadas pelos poderes da terra, ainda estão vigentes para as almas nobres, e eu hei-de ser sempre anachronico nos sentimentos de indignação que voto á classe que trafica com a miseria e com o suor dos seus semelhantes». Estas passagens são elucidativas; valem um largo compendio para a revelação do pensamento de José Estevão em pontos capitaes do mecanismo economico. Afiguravam-se-lhe attribuições das misericordias e institutos de beneficencia os deveres que hoje reputamos obrigações elementares do estado organisado n'uma base de justiça--«a velhice extenuada pelo trabalho domestico», «chusmas de creanças pedindo a instrucção e agasalho», «uma distribuição equitativa da caridade por todas as miserias da vida humana». Seria obra de corações bem formados o que agora se reputa simples direito de todo o elemento organico da communidade. As leis da usura vigoravam sómente «para as almas nobres», e pareciam votadas a estes reinos sem esperarem, como hoje esperam onde não o conseguiram já, que as leis do estado as estabelecessem, determinando a distribuição e uso do capital. Dominava o individualismo; e o tribuno, embora o sentisse cruel, quereria moderal-o respeitando-o, corrigil-o por forças estranhas, sobretudo moraes, que não offendessem o principio essencial. De certo por amor á liberdade, fanatico das suas victorias, não ousava encarceral-a n'uma organisação juridica severa, para que ella não opprimisse os desgraçados e lhes deixasse no mundo o espaço que lhes competia, e lhes era indispensavel á saúde physica e moral. Mas não o cegava tão completamente a fascinação do liberalismo utilitario,--appressemos-nos a reconhecel-o, que o apostolo das mais puras aspirações não previsse com sympathia calorosa e lucida tempos novos, annunciando uma outra liberdade, quer na vida dos estados, quer na vida individual, unicamente legitima emquanto não offendesse a equidade e a justiça. Presentiu-os e desejou-os. Claramente o dizia aos discipulos, nas lições d'economia politica do seu curso: «Em vez do congresso da paz socialista, houve batalhas sociaes. O periodo da sua realisação affasta-se, mas o seu apparecimento não é menos urgente: ha-de chegar um dia, e será aquelle em que raiar o verdadeiro progresso para o mundo e em que os principios christãos ascenderem á sua verdadeira altura. E de passagem diremos que não nos cumpre classificar d'utopia senão o estacionamento». A infiltração da crença socialista é manifesta; estava n'ella «o verdadeiro progresso», e identificava-a já, como de futuro se identificou, com os principios christãos. A agudeza d'espirito, exaltada pelo amor, descobria-lhe, n'um relance de illuminado, as fundações religiosas e moraes d'aquella grande aspiração politica. E, passando a definil-a e exemplifical-a em pontos de execução pratica, acrescentava: «A nossa população tem subido a quatro milhões de habitantes, e cresceria mais se se removessem os obstaculos que impedem o seu desenvolvimento. Se os morgados fossem abolidos; se o credito fosse assentado nas suas verdadeiras bases, ampliado, estendido e applicado á terra; se aclarassem os meios de posse territorial; se se reforçassem as hypothecas; se se desse á terra amparo contra as argucias forenses que se levantam para pôr em duvida posses sanccionadas pelo tempo e trabalho, de certo que a nossa população cresceria rapidamente». A apreciação do valor da pequena propriedade advinha-se n'essas breves palavras; e quem tanto a amava, anceiando por lhe facultar caminhos novos e garantias solidas, e não ignorando o que ella representa na consolidação das sociedades democraticas, fazia por aquelle modo uma profissão de fé politica, não menos nobre nem cathegorica do que as demais que firmára nos feitos militares e nos impetos da eloquencia parlamentar. É, porém, na discussão do lançamento dos impostos que José Estevão mais particularmente accentua a sua comprehensão dos problemas economicos; é ahi que com mais vigor se insurge contra as iniquidades que, apezar de reformas politicas, da carta constitucional, do parlamento, do direito de voto e mais formulas e exterioridades liberaes, mantinham de pé, se é que não as aggravavam, oppressões e servidões, annulando de facto por completo os beneficios da mudança de regimen. «A minha reforma politica», declarava, «consiste na revisão de todos os tributos, não só antigos, mas dos ultimamente lançados, para de todos se formar um systema pelo qual se possa distribuir a contribuição com igualdade; e as contribuições novas que eu votei, e ás quaes reitero o meu voto, não formam ainda um systema completo e perfeito, porque o resultado é que a contribuição não tem attingido, já não digo a igualdade possivel mas a igualdade toleravel, porque os pequenos martyrios que os homens desvalidos, os homens do povo soffrem, são muitos, são immensos, e é necessario procurar dar remedio a esses males». «Detesto», disse em outra occasião no parlamento, «acho repugnante, altamente injusto, radicalmente anti-democratico e desigual o imposto indirecto». E, entre as apostrophes eloquentes que o apresamento da _Charles et George_ lhe inspirou, veremos irromper aquella condemnação do parasitismo, que sempre lhe vinha de prompto aos labios no fervor constante do desejo d'um mundo novo ungido de justiça: «Não ha nações morgadas, assim como não póde haver familias morgadas. A humanidade não cabe no mundo, nem com o seu numero nem com as suas aspirações. E esta verdade, que é hoje experimental, impossibilita a existencia da propriedade territorial, inculta e descuidada, seja nas mãos dos individuos ou na mão dos povos. O trabalho é o principio e complemento de todo o direito de possuir». Tal era a conclusão a que o levava o espectaculo de proprietarios ociosos na abundancia, guardando, improductivos, bens valiosissimos, perante as plebes ruraes, indigentes á mingua d'um pedaço de terra do qual tirassem o pão. Convencido por este exemplo, por esta ordem de factos economicos, de que o trabalho era o principio de todo o direito de possuir, tanto lhe bastaria para que, pelos impulsos logicos do espirito e ainda mais pelas inspirações do seu coração, viesse a tirar d'esse principio as consequencias que contem, applicando-o a muitos outros e complexos phenomenos, encaminhando todos a resultados communs que a evolução politica dos estados civilisados vae gradualmente traduzindo. Na confusão das ideias do seu tempo n'esta materia e nas circunstancias do paiz em cuja administração era chamado a intervir, anarchico e pobre, alheio por isso aos tumultos proprios dos jorros abundantes da riqueza, que em nações adeantadas constituiam simultaneamente a extrema fortuna e angustias oppressivas, José Estevão não podia na realidade avançar mais do que avançou na aspiração socialista. Mas, sem embargo, a visão da nova era mostrou-se-lhe em todo o esplendor, e tinha-o rendido ás suas seducções. De resto, a tradição da vida particular de José Estevão confirma as confissões da vida publica sobre o modo por que concebia a sociedade democratica. A igualdade que reclamava nas leis do estado, a illegitimidade de que accusava a propriedade inculta ou sequestrada em morgadio, o respeito do trabalho como principio unico da posse, a aversão a impostos indirectos que sacrificam os miseraveis e poupam os ricos, todo esse novo regimen juridico que no pensamento se lhe ia esboçando, ajustavam-se no trato ordinario a uma inclinação permanente a conviver e familiarisar-se com operarios e gente humilde. Em Aveiro essa tendencia ficou memoravel, e quasi constituiu uma escola de nivellamento social de todas as classes e condições, que ainda hoje dá um aspecto singular á vida quotidiana da cidade. Aquelle homem que era temido e querido entre os maiores da sua epoca, burguez de nascença, filho d'um medico e neto dum official publico, bem cedo fidalgo consagrado pelo talento, pelo caracter e por uma distincção irresistivel, acolhido na aristocracia da capital com affecto e summo respeito, como se lhe pertencesse pelo sangue, ou ainda mais, esse homem a que por tantos motivos poderia perdoar-se a vaidade e o orgulho, victorioso de tantos combates, apetecia o convivio dos mais pequeninos e n'elle se deliciava, dão direi sómente accessivel á gente do povo e á de toda a condição, mas procurando-a e amando-a, atraido por um poder de sympathia intima e plena. Estou mesmo bem certo de que a razão principal da sua popularidade em Aveiro foi mais este reconhecimento instinctivo dos seus sentimentos intimos do que a admiração do seu genio, cuja grandeza escapava ao vulgo. Foi amado, porque amava. VII Monarchico e catholico, partidario e defensor de formas de constituição politica, religiosa e social que representam grave desigualdade e graus infinitos de hierarchia; por outro lado e ao mesmo tempo, empenhando-se, sempre apaixonado, em assegurar nas leis do estado os direitos populares, sobretudo aquelles que, conferindo ás classes trabalhadoras a independencia economica, mais solidamente lhe outorgam a unica base efficaz de soberania e igualdade--José Estevão parecerá, a quem quizér esboçar o systema das suas ideias, contradictorio ou fraco, sem coragem de levar ás ultimas consequencias os principios que professava, ou negando-os repetidas vezes pela acceitação de principios oppostos, em relações essenciaes da communidade politica. Contradicções e fraquezas d'esta natureza, se as tivesse, justifical-as-ia plenamente o seu tempo. Justificava-as uma epoca em que não era facil determinar o quinhão do passado e o das aspirações do futuro em toda a extensão da mentalidade humana. O passado não fôra arrazado totalmente, e, pelo contrario, ao fim de diversas tentativas e experiencias, mostrava-se indestructivel e vantajoso em muitos dos seus elementos, o que perturbava as energias reformadoras; e o futuro não lograva apresentar-se tão isento de sombra e duvida que fosse possivel conceder-lhe sem hesitação ou exame, de coração leve, quanto elle pedia. Mas, para comprehendermos a attitude politica de José Estevão nos diversos aspectos que apresentou, não carecemos de recorrer á invocação do espirito de incerteza e fluctuação que a vitalidade e respeito das tradições, em conflicto com os impulsos revolucionarios, communicava á maioria das nações da Europa. Reflectindo, acharemos que a concepção politica de José Estevão era, na verdade, coordenada, sem atraiçoar a boa logica ou prejudicar o caracter, e muito menos sem os devaneios romanticos de radicalismos que a destituissem de efficacia e capacidade pratica. A historia encarregou-se de mostrar até que ponto a mais alta elevação do sentimento politico póde coexistir com um opportunismo attento e flexivel, mas no fundo incapaz de corromper-se, sejam quaes forem as transigencias a que o pendor e instancia do momento possa coagil-o. O desenvolvimento e victorias successivas e progressivas do socialismo moderno nas monarchias da Belgica, da Allemanha, da Inglaterra e d'outros paizes, confrontado com movimentos parallelos nas republicas, quer da Europa, quer da America, tem-nos dado e continua a dar-nos abundantes e elucidativos exemplos da possibilidade de coexistencia da realisação de radicalissimas aspirações sociaes com instituições politicas e religiosas obsoletas, muitas condemnadas, e quasi todas n'um declinar de popularidade que as ameaça de morte. A observação dos factos, já longa e variada, inclina antes á demonstração de que a emancipação politica e religiosa dos povos, a transferencia plena da soberania para os elementos activos das nações e a libertação de todo o dogmatismo, para serem duradouras, estaveis e beneficas em toda a extensão, necessitam de ser precedidas de constituição social adequada. O primeiro passo na conquista das liberdades democraticas será a conquista do pão, como um direito e não como uma esmola. Sem isso, a oppressão e a tyrannia jámais se afundam; e medram, ou sob mantos d'arminhos ou nas casas fortes do capitalismo republicano, ou se chamem _trust_ ou se intitulem czar. Quem sabe que desillusões não nos prepara a lucta terrivel do imperialismo e da democracia?! Quem póde assegurar-nos que um novo cesarismo não vae avassalar o mundo?!... Não se estará gerando um novo dragão d'esse consorcio infernal do capitalismo e dos armamentos monstruosos? E, se elle vencer, que doçura e supremo bom senso não coroará a memoria d'aquelles, como José Estevão, que por vezes nos teriam parecido hesitantes e timidos, sómente porque uma agudissima sensibilidade, revelando-lhe a justiça intima das cousas, os livrou de cair em extremos?!... Paraphraseando o lema d'um agitador notavel da Inglaterra[11], que se insurgiu contra o egoismo industrial do seu paiz, talvez não nos affastassemos muito da verdade resumindo em tres palavras a concepção social e politica de José Estevão:--O altar, o throno e a choupana. Inspirado pelo deslumbramento da gloria do passado e pela sua força e opulencia, ao mesmo tempo exaltado por uma febre de justiça que não lhe deixava repouso emquanto não a visse triumphante, vibrando d'indignação perante toda a vilania, teria sonhado um estado de trabalhadores vigorosos, e sãos e dignos, na plenitude de bens do mundo e da consciencia, coroada a fortuna d'essas communidades felizes por um governo e por um culto resplendentes de magestade e nobreza. Porventura quereria que á elevação do sentimento correspondesse a grandeza das suas manifestações exteriores e a symbolisasse, na sumptuosidade e nos ritos, nos palacios, nas magistraturas e nos templos, satisfazendo necessidades indeclinaveis do coração humano. [11] Oaslter. De sua natureza mudaveis e sujeitas a infinitas contingencias, importam todavia muito pouco as concepções politicas, em face da sublimada inspiração moral que inflamou o genio de José Estevão e dominou todo o seu ser. «É mr. Lamartine,» disse elle, «um poeta que carpiu todas as miserias da humanidade, que exaltou todas as suas glorias, que excitou todos os seus melhores instinctos, que levantou a coragem dos povos, que acalmou as suas demasias, que suspendeu com a sua palavra todas as paixões revolucionarias da França; esse homem cuja composição moral e intellectual é no meu presentimento como o simulacro da fortuna politica e dos futuros governos da Europa...» Era assim que José Estevão, julgando pintar a physionomia alheia, traçava fielmente a propria imagem, e, honrando o nome estranho, entretecia a corôa de gloria que convém á sua propria fronte. Disse, felizmente, a sua eloquencia o que a nossa adoração seria incapaz de traduzir. N'essas curtas palavras, legou-nos um retrato precioso. Procuremos agora observal-o com a pausa e carinho que um sentido culto exigem. II CARACTER E ARTE CARACTER E ARTE I Um dos signaes mais evidentes da robustez da compleição moral de José Estevão e da firmeza do seu caracter, foi a energia com que supportou os errores romanticos do seu tempo, e de todo se libertou da fluctuação e fraquezas proprias d'aquella epoca, perigosas para qualquer, e sobretudo para as organisações nimiamente sensiveis e promptas em responder ao incitamento estranho, como era a sua. Mas, por um fundo d'austeridade invencivel, sentiu-as para lhes resistir e não para se lhes render. N'uma crise em que o principio da liberdade, traduzido na pratica ordinaria e nos costumes em relaxação e despejo, emancipando de toda a tutela rigorosa da antiga constituição social, religiosa, politica, moral e litteraria, facilmente induzia a uma indisciplina absoluta, obliterando por completo o sentimento do dever e legitimando paixões, crimes e aberrações, em que a phantasia e não raro a vaidade precipitava a gente moça, mal precavida de experiencia e reflexão, é maravilha o poder de sacrificio e o esforço constante d'um homem para fazer prevalecer na sua terra o imperio da justiça. A tentação era temerosa. Muitos, aliás de valor, lhe cederam, caindo em culpas e desgraças que uma atmosphera menos propicia ao desvairamento lhes teria poupado. A crença romantica encontrava boas razões para toda a sorte de desordem. Não triumphava a liberdade? Para que constrangimentos? Era necessario perseguir até á anniquilação todos os despotismos, os canones da moral como os da egreja, o absolutismo estreito dos usos e costumes como a auctoridade sem limites dos reis. Porque não poderia cada um abandonar-se sem peias nem reservas ás tendencias do seu temperamento, no conceito corrente talvez todas salutares e, pelo menos, sem duvida todas admissiveis? Não seria até um erro contrarial-as? Não seria uma violação das leis naturaes e um aggravo á felicidade humana? Não era do concurso de todas as liberdades que havia de resultar a harmonia dos homens e o progresso das sociedades? No espirito de muitos dos seus hallucinados sectarios, a liberdade não significava a simples abolição de privilegios odiosos e instituições oppressivas, caducas e corrompidas, para as substituir por outras que conviessem a aspirações sociaes mais nobres e conformes com a dignidade humana; era o desregramento, a ausencia de preceito que interior e exteriormente regulasse e sanccionasse as acções, um absolutismo de nova especie, o absolutismo da incontinencia. Liberdade de pensamento, liberdade de cultos, liberdade dos vinculos matrimoniaes e da familia, liberdade d'acção e até de inacção, de indifferença e cynismo, exaltações mysticas, egoismos abjectos e cobiças sordidas, para tudo isso encontraram explicação bastante as philosophias liberaes d'astuciosa commodidade. Aviltamento e nobreza eram pólos da esphera moral que iam a apagar-se; já ninguem sabia ao certo marcal-os. Por uma estranha e nunca vista concessão, as paixões sairam como doidas das prisões em que as continham encarceradas os espectros de deveres inexoraveis, e vinham expandir-se á luz do sol, ora em bem, ora em mal, e sempre impetuosamente. A litteratura glorificava-as, com uma fecundidade e um esplendor d'arte deslumbrantes. A litteratura de que Byron foi o summo pontifice, e portentoso, deixou-nos um testemunho inequivoco e, sem embargo, brilhante, d'esse estado d'espirito que, se para muitos foi exaltação merecida, se para a humanidade foi uma crise de renovação e renascimento necessaria e fertil em beneficios, foi tambem para outros fonte amarissima de desenganos, de tristeza e desgraça, que tantas vezes se refugiou na morte, e por todas as nações da Europa determinou, invariavelmente, conflictos graves e lances perigosos, rematados com fortuna varia para os destinos dos povos. Não ha melhor espelho dos factos e das tendencias d'uma epoca do que a litteratura; nenhum os reflecte tão claramente e, talvez por isso, porque os expõe na mais transparente lucidez, é ao mesmo tempo effeito das correntes estabelecidas e causa da sua propagação, moderando ou accelerando, pela revelação plena do que encerram d'atraente ou de repulsivo, as tendencias de que andar impregnada. Nem a estatistica, com a seccura, desligação, insufficiencia e abstracção dos seus dados, nem a propria historia com as longas narrativas, em que o espirito e inclinações do historiador facil e ingenuamente favorecem ou prejudicam a reproducção exacta dos acontecimentos, supprem a litteratura na arte de guardar integra e perfeita a memoria do estado mental e tendencias sociaes de determinado momento, collocando-nos em contacto directo com os caracteres e os feitos, renovando-os aos nossos olhos em movimento e acção. Ora a litteratura romantica que José Estevão respirou nos melhores annos da vida, n'aquelles em que mais o podia seduzir e maior influencia podia exercer na disciplina ou indisciplina do seu coração, a litteratura romantica, na sua constituição moral, distinguiu-se pela adoração de duas divindades, que serviu com ardor e brilho incomparavel:--a felicidade do homem e a natureza. Dos tormentos e miserias geradas pelo absolutismo oppressivo de todas as actividades e impulsos que se afastassem dos seus mandados, veio-se, pela reacção natural dos organismos opprimidos e atrophiados, ao extremo opposto, passando-se do idealismo da uniformidade ao idealismo da liberdade sem limites, do abuso da regra á desinvoltura da dissolução; e, para que os homens se curassem de males e de futuro vivessem felizes, concluiu-se pela exigencia d'uma emancipação não menos absoluta do que a sujeição precedente. A natureza! A natureza!... Logar ao seu triumpho e imperio! Não constrangessem nenhuma das suas energias, e todas as mágoas e dôres se transformariam em alegrias e riso e força! E viu-se então uma expansão do genio poetico maravilhosa, unica na historia, pela fecundidade, pela grandeza, pelo arrojo da ambição e pela extensão dos horisontes, inflamando e arrebatando os miseros mortaes na belleza de miragens celestes. O homem, feito anjo e liberto de mesquinhas ligações d'um mundo decrepito e abominavel, amava livremente, pelas florestas virgens, pelos ermos e pelas ruinas abandonadas, as mulheres divinisadas pela paixão e nos seus fachos gloriosamente consumidas; e os cavalleiros e os santos e os martyres surgiam, por milagre e em exercitos, das profundezas da terra, armados de coragem infatigavel e sedentos de sacrificio. Escutasse cada qual a voz intima do seu sangue e do seu peito, deixasse-a cantar como as aves cantam e obedecesse-lhe, não temendo convenções nefastas e condemnadas, repudiando todo o mandado e auctoridade que não fosse a sua propria inspiração; e entraria nas espheras da mais alta beatitude. Não era assim em toda a natureza? Não viviam d'esse modo os animaes bravios e as plantas?!... E havia porventura felicidade que não possuissem, harmonia que não realisassem?!... Uma antecipada promessa de perdão incitava ao desmando. A percepção da necessidade e eternidade d'um principio religioso e moral, dominando as paixões e subordinando a natureza á consciencia, o que, na verdade, se manifestou desde o começo d'esse extraordinario movimento, era ainda frouxa e sobretudo vaga, incerta, ora tentando galvanisar concepções mortas e sentimentos corrompidos, ora modelando novos deuses sem consistencia, hoje nascidos e amanhã desfeitos em pó. E nas ondas incessantes d'esse tumulto perdiam-se sem norte e sem bussola almas nobremente e generosamente dotadas, resvalando em abysmos infernaes, com uma inconsciencia digna de melhor destino, facil preza da embriaguez e do vicio, endoidecidas na propria sinceridade e arrastando e prostituindo por logares infames a pureza d'altissimas aspirações. Deveriam ter sido legião as victimas obscuras, perdidas pelos caminhos errados e fataes que a liberdade romantica lhes abria e apontava, ella que, de facto, e involuntariamente o mais das vezes, nenhum prohibia como criminoso ou arriscado e indigno. E o perigo de tentação era tanto mais grave quanto era certo que, na atmosphera revolta do romantismo, o mundo mal acautelado contra a distincção de limites em que é licito moverem-se os mortaes communs e os sobre-humanos, prostrado d'assombro, semi-louco e em delirio d'admiração e imitação, via erguerem-se a alturas ignoradas, n'uma aureola fascinante, os genios que, quem sabe? valeram talvez as centenas de victimas ignoradas que custaram, para dar á humanidade exemplo da sublimidade em que a nossa alma é capaz de exaltar-se. Foi do meio d'esta confusão terrivel que Portugal viu levantar-se, proeminente e firme, d'uma robustez moral inabalavel, um homem que sabia o que queria, que o queria porque o devia, e para o cumprir empenhava o coração, o pensamento e o braço, a vida inteira, consagrada ao dever e n'elle consumida, por sua honra e nosso orgulho. Como revelação do caracter de José Estevão, essa attitude, cuja soberania a nação reconheceu pela auctoridade que conferiu ás suas palavras e pelo respeito que lhe votou, é decisiva e, em certo modo, quasi milagrosa. A sensibilidade de José Estevão e a riqueza das suas faculdades, até uma sensualidade manifesta[12], deveriam determinar um extremo pendor para a indisciplina romantica e fomentar por isso um enfraquecimento de vontade funesto á energia d'acção e tenacidade de proposito e emprehendimento. A pujança do temperamento explicaria e desculparia hesitações e tibiezas, o abandono a impressões passageiras, traições frequentes á fé jurada em espirito ou em palavras, desvios e tergiversações. A sua vida, porém, pela constancia inalteravel no combate e nas aspirações, demonstrou-nos a fixidez d'uma attitude radicalmente opposta a fluctuações e desmandos ou desfallecimentos. [12] «Batido o exercito constitucional e dissolvida a Junta do Porto, o batalhão academico, como todas as demais forças fieis, seguiu o caminho da fronteira, vindo a entrar na Galiza no dia 6 de julho (1828). José Estevão fez toda a marcha quasi sem dinheiro, sem roupa e sem calçado. Em Lobios o seu amigo e patricio Mendes Leite deu-lhe uma das duas unicas camisas que levava. José Estevão levára comsigo um pequeno cordão de oiro, talvez uma recordação de familia; mas em Lobios desfez-se d'elle, não para occorrer a alguma das suas muitas necessidades de occasião, mas sim para satisfazer a sua gulodice (pois era e sempre foi muito guloso), para comprar _gemas_. Para se avaliar de quanto lhe custariam as taes _gemas_, basta dizer-se que, no acampamento de Lobios, se vendia então por 600 réis uma brôa de pão de milho que poderia valer 100 réis.» Snr. Marques Gomes, _José Estevão, Apontamentos para a sua biographia_. Porto; Typographia Occidental, 1889. Pag. 14. N'este ponto, José Estevão não foi do seu tempo. Foi mais longe do que o seu tempo; inscreveu-se no livro d'ouro dos prophetas. Attingiu toda a capacidade do idealismo militante e praticamente efficaz que entre as ruinas do passado, o naufragio das crenças e a inundação d'um scepticismo, refinadamente epicurista e moralmente desdenhoso, apenas germinava e só de rarissimos eleitos era apreciado, sentido e querido. A grande maioria de homens cultos e dos talentos consagrados estava longe de suspeitar as affirmações vigorosas e triumphos resplendentes com que no final do seculo XIX a renascença idealista seria coroada pelo estudo paciente da historia, pela penetração da estructura psychologica das sociedades humanas e das suas condições fundamentaes, e pela consequente creação de artistas, philosophos, poetas, criticos e apostolos, deslumbrando e convencendo, graças á desusada formosura das suas obras, e convertendo á adoração de novos altares, cheios de luz e mansidão, pelo ardor communicativo do sentimento em que se enlevavam. N'essa resurreição de Lazaro, doente de descrença e perversão, das feridas de luctas e calamidades que irremediavelmente tinham d'acompanhar a revolução, José Estevão foi, na verdade, um precursor abençoado, alimentando-se na fonte em que as almas enfermas se curam e as sãas se fortalecem para superiores destinos. II «Eu detesto os heroes todos», disse um dia José Estevão[13]. «Os heroes são excepções monstruosas da nossa natureza; podemos vangloriar-nos de vermos os seres da nossa especie exceder as condições ordinarias da nossa existencia, mas essa vaidosa satisfação custa sempre cara. Os heroes são uns filhos prodigos da natureza e da sociedade, que dispõem, em proveito das suas paixões, do oiro, do sangue e da honra do mundo: que sacrificam aos seus caprichos quanto ha n'elle de mais santo, de mais nobre e de mais sympathico, e a Providencia, que castiga sempre, ainda que por diversos modos, os que se esquecem da humildade do berço commum, ou lhes esconde a lousa da sepultura para que os deslembre, ou lh'a deixa apontada á indignação publica para que os aborreçam.» [13] Discurso sobre o apresamento da _Charles et George_. O homem que fallava dos heroes n'estes termos, era a mais genuina encarnação do espirito heroico. Simplesmente se illudia e errava quando, ao analysar o valor d'esses seres da nossa especie, «excepções da natureza», de que podemos orgulhar-nos, sem duvida, por «excederem as condições ordinarias da nossa existencia», affirmava, peremptoriamente e sem reservas, que «essa vaidosa satisfação custa sempre cara, e «os heroes, filhos prodigos da natureza e da sociedade, dispõem, em proveito das suas paixões, do oiro, do sangue e da honra do mundo, e sacrificam aos seus caprichos quanto ha n'elle de mais santo e de mais nobre.» Porque a nós, portuguezes, nem nos custou caro o heroismo de José Estevão,--muito lhe deviamos e pagamos-lhe pouco e mal; nem jámais o vimos dispor, em proveito das suas paixões, do oiro, do sangue e da honra da nação, antes sempre o encontramos honrando-a pelo sacrificio do proprio sangue e pelo risco da vida em bem da sua nobreza o gloria. E muito menos soubemos que a providencia quizesse castigal-o, ella que instantemente nos aponta a sua sepultura, não para a aborrecermos mas para a adorarmos, ella que da sua memoria fez um culto salutar e purificador. O ingenuo, desconhecendo a que regiões o genio o erguia e em que mundos de claridade o trazia combatendo, condemnou o heroismo ao deparar-lhe com a perversão e tomando-a pelo seu caracter unico e consequencia. Num desejo vehemente da punição dos seus crimes, esquecia as virtudes que o constituem na pureza da sua essencia e resgatam em homens d'eleição, por feitos immortaes, a fraqueza d'uma outra e vulgar humanidade transitoria, debil e corruptivel. E ignorava, porque a candidez d'alma o offuscava, que elle, heroe tambem e dos mais altos, passaria na terra agitada de paixões, sem que o heroismo o pervertesse, e sem que os seus triumphos, que foram magnificos, o cegassem, nem o seu poder, que foi largo e duradouro, constante, conseguisse degenerar em vaidade, capricho, mentira, insensatez e crueldade a energia e o fulgor que só pela justiça se inflamavam e a nenhuma sollicitação de baixeza jámais responderam. Para o homem consagrado por instigação da consciencia a uma missão sobre-humana, por ella sujeito á obediencia e imperio de forças sobrenaturaes divinas, cujos designios tem de cumprir e que no seu intimo habitam e o vigiam e regulam em todos os apetites e tendencias, ora condemnando, ora absolvendo, ora reprimindo, ora incitando, não ha senão tres soluções da crise moral, em que necessariamente tem de debater-se ao iniciar da vida consciente e ao escolher caminho entre as aspirações e as tentações do mundo. Perante os conflictos eternos do bem e do mal, se os sentiu e quiz ter preferencias, e, se os sentiu, ai d'elle! tem d'escolher e preferir, que uma voz interior e sem repouso lh'o exige; perante essa interrogação temerosa, sómente tres estradas vê abertas: --a abdicação, estoica ou santa, o orgulho invencivel na insensibilidade premeditada e voluntaria, ou a humildade perfeita no desprendimento absoluto, resultando, segundo o modo a que se inclina, ou na simples contemplação, passiva e paciente, por effeito da identificação com a alegria do universo, ou na acceitação da dôr, como inexoravel, e procurando então a salvação em si, descrendo da possibilidade de modificar a fatalidade e se lhe oppôr; --o suicidio, terminando a melancolia desesperada, pela certeza de que só na dissolução do proprio sêr encontrará a paz; e --a acção, o voto heroico, derivado da confiança e fé na vontade e no esforço dos homens, a conversão immediata do sonho em motivos de proceder e tentativa de realisação, para resgatar d'angustias e produzir na terra a tranquillidade, a abundancia, a alegria, a felicidade emfim. Ora, entre estes tres modos de sêr, José Estevão, por temperamento, por educação e por circumstancias caracteristicas do ambiente que o involvia, foi dominado pelo arrebatamento heroico. Nada temeu como a inacção. Foi para elle a suprema desgraça. Em 1852, fallando de Saldanha e relembrando que havia sido perseguido durante o seu ministerio, disse n'uma expontanea confissão, e valiosa para a comprehensão do seu caracter: «Nenhum soffrimento da minha carreira politica me custou tanto como essa perseguição. Um homisio d'um anno, não estando bastante compromettido para me resignar aos martyrios d'uma emigração, não podendo exercitar livremente no paiz as faculdades mais nobres do espirito, nem cultivar as relações de parentesco e amizade, instigado pela minha innocencia legal a comparecer deante dos tribunaes, constrangido pelo pundonor a ser carcereiro de mim mesmo, vendo dos incertos paradeiros das minhas curtas e enfadonhas peregrinações cair num mar de sangue a estrella brilhante da revolução europeia, recebendo e abraçando no meu captiveiro os meus cumplices já absolvidos e restituidos á liberdade, de que por tal causa eu era o unico privado, tudo isto compozéra para mim n'aquelles tempos uma d'estas situações equivocas, fastidiosas e mortificantes, que entristece mais do que as desgraças profundas e irremediaveis»[14]. [14] Sr. Marques Gomes. _L. c._, pag. 115. O heroe, exaltado na impaciencia d'acção, a tudo poderá sujeitar-se, toda a dôr e sacrificio poderá acceitar d'animo sereno, menos aquelle estado de sequestro do mundo e de intervenção nos seus feitos, que significa a annulação completa de todas as faculdades, a condemnação ao espectaculo da propria esterilidade, dia a dia sentida e verificada. E José Estevão, victima docil do seu temperamento e partilhando da sorte d'aquelles a quem por sua gloria coube igual dote no livro do destino, não pôde resignar-se com o terror d'esse apartamento violento, para elle peior do que a morte, porque era a immobilidade junta á constancia da aspiração, o tumulo sem a paz da inconsciencia. Chorou-o como o mais angustioso tormento. Desde que, moço quasi imberbe, se armou cavalleiro na batalha da Cruz dos Marouços, até que a morte o arrebatou, anciado e ainda quente das pugnas parlamentares, luctou com a rigidez d'uma tenacidade épica pela justiça e pela verdade, confiado na victoria do seu reino, que os corações como o seu haviam de estabelecer na terra, por um trabalho gigantesco, antecipadamente certos de que o triumpho ou a derrota serão sempre objecto e resultado da capacidade humana e suas façanhas. O temperamento heroico não se inocula por artes pedagogicas, por contingencias do acaso ou por virtude de simples condições externas; ou uma scentelha inominada e intima o accendeu, ou influencia alguma, alheia a essa vibração, poderá creal-o. Se José Estevão o possuiu e d'elle foi luminoso reflexo, é que o trouxe quando viu a luz, ou que alguma fada lhe bafejou o berço. Esse espirito era seu, propriamente seu; e foi elle que derramou da sua robusta figura d'athleta a irradiação de claridade que a engrandeceu. Todavia, sem embargo, as condições transitorias, se não pódem gerar o heroismo, podem favorecel-o ou atrophial-o, deixando-o consumir esteril na inercia e na obscuridade; podem prohibir-lhe toda a expansão, contrariar-lhe os impetos ou negar-lhe ensejo de se alargarem. E José Estevão teve a fortuna de vir ao mundo n'uma epoca em que a educação classica e a exaltação do civismo, provocado pelo ardor das paixões politicas, se mostraram singularmente propicias a revelar-lhe e fortalecer-lhe o caracter. Primeiro, a educação. Nunca houve escola que valesse o humanismo latino para despertar o ardor heroico. Nem o estudo dos gregos, tão repassado de philosophia, serenidade e belleza, o poderia supprir para este fim. E, como todos os portuguezes cultos do seu tempo, José Estevão teve essa educação unicamente embebida de Virgilio, de Tito Livio, de Cicero e de Horacio, de feitos de guerra, glorias militares e grandeza civica. Sahia-se da escola a sonhar com o senado e as legiões romanas, suspirando pela hora de prostrarmos vencidos os inimigos da patria e receber entre os applausos das multidões freneticas os louros da victoria, com aquella intensidade de desejo e commoção que os mestres nos communicavam facilmente, n'um insensivel e involuntario contagio, porque em alto grau a sentiam tambem. Durante mezes e annos não se fallava d'outra cousa; nenhuma se encontrára superior, nenhuma nos merecera maior admiração, nenhuma constituia aspiração mais nobre. Mandar nos homens e governal-os para os conduzir á gloria era a suprema elevação e a mais incontestada dignidade. Ignorava-se, e nem se podia conceber sem desdouro e pejo, a frieza e scepticismo da educação requintadamente scientifica. Essa estava reservada para as ultimas decadas do seculo XIX, embora tivesse origem em reflexões e estudos de longa data iniciados e adeantados, mas que até então eram qualquer cousa estranha e sobreposta á vida civica, sem influencia na sua base moral. A invenção de que o egoismo é uma lei tão real e merecedora de respeito como o desprendimento, e a cobardia tão natural como a coragem; a justificação de mil baixezas, outrora julgadas abominaveis e criminosas e hoje fundadas n'um arsenal de razões physiologicas e psychologicas, retintas todas de rigor scientifico e com pretensões a verdades essenciaes; este apuro de impudor e de ascenção da animalidade estupida e cruel á cathegoria d'um modo de ser normal, a negação do sentimento do dever pela acceitação plena da fatalidade, seja ella qual fôr, indistincta; o inteiro quebrantamento da vontade que d'ahi resulta; a reputação de enfermidade atribuida ao genio, ao heroismo, á santidade, ao simples escrupulo de bem fazer--isso é moderno. Na verdade, só agora se propagou com louvor e a contento dos sacerdotes da sciencia e dos profanos. A educação d'outros tempos, da renascença até ao meiado do seculo XIX, era nas suas consequencias moraes a admiração da magestade romana, offerecida como o mais alto exemplo aos moços que entravam na vida e para ella se preparavam; a concepção pagã da robustez, da força, da ordem e da justiça, a devoção civica posta acima do preceito religioso, seriam regras supremas na conducta dos homens. O proprio christianismo que se lhe interpozéra e a abalára, formava capitulo áparte, já atenuado nos effeitos mysticos e caridosos pelas formas conciliadoras da egreja catholica, com tanto de Jesus como de Cesar. A santidade seria apenas para Deus, objecto d'ermitas, de conventos e d'almas piedosas; para o mundo, o heroismo era cousa mais de venerar e seguir. Scipião valeria, pelo menos, tanto como S. Paulo; o borburinho de togas e de lanças não era menos grato aos ouvidos do que o murmurio das orações e canticos dos templos, nem se cobiçava menos o capacete do guerreiro do que o resplendor seraphico; a expansão do idealismo judaico, com os seus martyres, nem de longe se comparava com o brilho das guerras punicas e dos seus soldados, dos que salvavam a cidade. Se do berço trouxera o temperamento heroico, José Estevão deveria sentil-o vivamente acalentado na escola. Os impulsos da sua natureza propria e o caracter da atmosphera que encontrava nos primeiros annos, confundiam-se e completavam-se na uniformidade de tendencias. Ao mesmo tempo, como que rematando a inclinação ingenita, favorecida e afagada no periodo de formação e desenvolvimento pelas lições dos experimentados, excitava-lhe o ardor e chamava-o com desusada instancia o clamor de luctas politicas. Desde creança o ouvia a aproximar-se, cada vez mais perto da sua terra. O ensejo era unico, magnifico. Se algum dia houve paixões politicas na historia de Portugal, foi então. A sêde de liberdade que inflamou o povo romano, renascia. Convinha que se renovassem os heroes e os tribunos, que a apregoavam e saciavam. Reabria-se o forum. Viessem os consules administrar justiça; Para tão alta empreza se aprestou candidamente o iniciado. Soldado ou magistrado, eil-o descendo ao campo, prompto ao sacrificio, para morrer ou coroar-se de louros pela fortuna dos homens e só por ella combater. E partiu ao encontro de toda a sorte de penas, das feridas de batalhas sangrentas, das amarguras do exilio, da incerteza do seu destino e do destino d'aquelles que mais amava, da perseguição, da indigencia e da fome, e, peior ainda, das mordeduras do odio e da inveja d'aquelles cujo talento e designios escurecia ou contrariava. E tudo soffreu nobremente, invencivel na inteireza e força do seu coração, que jámais succumbiu ou esmoreceu. Um dia, n'uma hora solemne, vimol-o erguer-se no pedestal d'uma sublimada grandeza moral, cimentado por inumeraveis provações, para proferir estas palavras memoraveis, em que traduziu a isenção perfeita que de todo o ultrage o defendia, e a victoria ultima da consciencia e imperio do dever sobre os aggravos do egoismo e do orgulho: «Disseram-se injurias: jogaram-se apedreijos. E eu não ouvi as injurias; e as pedras nem os vestidos me tocaram. O tempo é do paiz: está adjudicado ao cumprimento das nossas obrigações. Mas é nosso o sangue que nos corre nas veias; e a sua primeira hypotheca é feita á nossa honra.» Como ouviria o rumor da infamia quem seguia sua estrada levado por uma estrella de justiça?!... A «paixão do bem publico», que havia de reinar dentro do parlamento[15] enchia-lhe o peito, e d'elle expulsava todo o sentimento mesquinho. Absorvia-o. Todas as energias do seu braço e da sua alma lhe estavam consagradas, porque «os caracteres superiores e os superiores talentos»--e a esse divino bando pertencia, «são aquelles que teem tanta perspicacia para conhecer a verdade como força para propugnar por ella»[16]. E essa força jámais o abandonou. [15] _Discursos_, pag. 215. [16] _Discursos_, pag. 421. Nem a gloria militar,--e é certo que muito lhe quiz, o desviaria de servir os homens. A espada havia de ser purificada pelo amor, para que o seu brilho não se escurecesse em infamia. «Tinha asco á guilhotina e não tinha consideração pela espada, quando ella serve a violentar os povos, porque a guilhotina é sempre a ignominia das revoluções, e a espada muitas vezes o opprobrio dos governos»[17]. [17] _Discursos_, pag. 331. «Ah! Como são valiosos, como são uma preciosidade moral, uma fonte de bens ineffaveis, um elemento de disciplina social, um paladio popular, os caracteres lisos, iguaes, nobres, experimentados em grandes provações, e superiores aos lances da fortuna! Que ha no mundo que os possa supprir? Que ha na sociedade que possa desempenhar a missão d'elles? «Pois José Estevão foi um caracter d'esta tempera, um homem d'estes quilates, um cidadão d'esta valia. Toda a sua vida foi uma consequencia rigorosa da sua composição moral. «Frequentemente attribuimos á fortuna os feitos dos varões illustres. Esta explicação dos elogios alheios é suggerida pela inveja. Por tal expediente, poupamos o nosso amor proprio, e dessimulamos o pezar da nossa obscuridade. O malogro das nossas tentativas, o desconcerto dos nossos projectos, o desfavor dos nossos concidadãos, quasi sempre provém de nós mesmos, e o infortunio contra que nos tornamos, nasce das nossas proprias culpas. «José Estevão é uma prova irrefragavel d'esta grande verdade. Representa, por todos os factos da sua vida, o grande principio da responsabilidade moral do homem. «Foi o homem de grande merecimento, d'altas façanhas, de inapreciaveis serviços, e gosou mais do que ninguem da estima dos seus concidadãos. Quaes são as causas d'este seu bellissimo sestro? Essas causas estão todas n'elle; com elle nasceram, e com elle acabaram. Abraçou pela critica intima da sua intelligencia as ideias que se lhe offereceram como mais justas á sociedade do seu tempo, e logo se dedicou todo ao serviço d'ellas, sem mais pensar em vida, affeições e interesses, quando estas ideias requeriam o seu auxilio e sacrificios. Era d'indole dulcissima, de coração affectuosissimo, bom sem limites, compassivo sem restricções, e este mesmo homem era bravo sem alarde, bravo sem intermitencias, bravo no meio de todos os perigos, bravo no campo, bravo em conselho, bravo no soffrimento,--quer dizer, sobranceiro nos grandes males da vida aos tremendos lances d'ella. Que significa isto? Que José Estevão era um homem de uma condição sublime, que a sua alma era forte, que o seu espirito era elevado, e a fortuna não dá, não póde dar, estes predicados moraes, estas supremas excellencias. Se as désse, podia mais do que Deus, mais do que as raças, mais do que o sangue, e n'esse caso antes o horror d'uma absoluta incredulidade do que o culto do acaso. «Mas José Estevão, pela rectidão do seu caracter, pela segurança do seu juizo, resolveu ainda problemas mais difficeis da politica e de moral. Foi um partidario dedicado e leal. Nunca faltou aos seus primeiros comprometimentos politicos. Como homem publico, era independente: como chegado ao rei, fiel. Trabalhou por vezes contra os seus adversarios politicos. Foi vencido. Os aggravos d'essas luctas esqueceu-os; conversava sobre estes acontecimentos com extrema magnanimidade. Tendo de hombrear pelos seus encargos de homem publico com pessoas de variadissimas extracções e maneiras, tendo de descer da vida cerimoniatica e estudada das altas regiões da sociedade para a convivencia do mundo, livre e por vezes descomedido, conservava-se sem affectação, lhano e accessivel para todos. Batalhou com a espada, porque lhe batia o coração. Não emprestou o seu sangue nem a sua bravura. Era homem convicto e a sua convicção era o seu norte. Entendia a liberdade e queria-a. Confessava-se seu adepto e sujeitava-se aos seus preconceitos. Zelava a sua crença mais do que as honras postiças do mundo. «Pelejou batalhas fratricidas. Doia-lhe o coração de levantar o braço contra os seus irmãos, mas não o pungiu o remorso de haver feito mal á patria e á humanidade. Pelejavam de manhã e abraçavam-se á tarde. Pelejavam como soldados e abraçavam-se como homens. «Não lhe opprimia a alma recordar uma vindicta politica, um só assassinato juridico. Respondia por quanto fizéra. E apezar das contendas desnecessarias, das desavenças pessoaes, de perniciosas fatuidades, deixou a terra que o creou, regida por melhores leis que ella tinha quando lhe deu o sêr, e gosando de maiores beneficios do que disfructara quando lhe foi dado conhecel-a»[18]. [18] Vid. Sr. Marques Gomes. _L. cit._, pag. 146 e seg. São de José Estevão essas palavras. Escreveu-as apreciando o duque da Terceira, quando elle morreu, em 1860. Sómente substitui o nome do duque pelo do tribuno. Mas que admiravel exactidão na imagem!... Por fortuna nossa e dos vindouros, o caracter de José Estevão ficou ahi estampado a primor, e mais do que estampado, confessado com uma sinceridade plena. Se tão lucidamente o comprehendeu e definiu n'um estranho, foi porque no intimo o sentiu fundamente; e glorificando os irmãos no ardor civico, embora pequenos e pobres de recursos a seu lado, com a ingenuidade que é tambem condição do heroismo, porque a reflexão o enfraquece e lhe é fatal, mais uma vez colhia e entretecia os louros que lhe coroariam a fronte. Querendo apenas ser generoso, exaltado na admiração do valor alheio, fez justiça á sua propria vida. III Tenhamos em lembrança a affirmação do tribuno: «Os caracteres superiores e os superiores talentos são aquelles que teem tanta perspicacia para conhecer a verdade como força para propugnar por ella». O espirito heroico, o arrebatamento na acção e a capacidade, inumeraveis vezes demonstrada, de se lhe consagrar em corpo e alma, não podia perturbar em José Estevão a lucidez do politico; porque, «caracter superior e superior talento», lhe era tão prompta a penetração da verdade como impetuosa a energia de combater por ella. A concepção politica da organisação do estado e das obrigações dos governos, para o inteiro dominio da justiça e para o derramamento da felicidade entre os povos, formava-se e modificava-se no seu espirito parallelamente com a expansão do ardor civico; e, se este tinha de manter-se inalteravel, integro, porque de sua natureza era irreductivel, a ideia politica havia de transformar-se com a experiencia das cousas, porque é por essencia mudavel e progressiva. Um mesmo sentimento guiava, porém, e conduzia as visões do apostolo e os planos e arte do homem d'estado áquella altura em que uns e outros deviam collocar-se para serem todos igualmente grandes. O heroismo não póde significar a insensatez e excluir o respeito de condições elementares de prudencia para se tornar efficaz no bom exito dos seus propositos. Comprehendendo as difficuldades e restricções impostas á realisação dos seus sonhos pelas paixões que redemoinhavam por todas as estradas da revolução, cauteloso por incitamento previdente da propria intensidade do desejo, para evitar os escolhos da jornada, mantendo o que estava ganho e preparando novas conquistas, avançando sem comprometter a posse do terreno adquirido, José Estevão seguiu em toda a conjunctura sua estrella heroica, transigindo sem abdicar, concedendo e conciliando o impulso da aspiração com as pressões do momento, sem jámais renegar, antes de continuo proclamando a sua fé. O opportunismo, quando as circumstancias lh'o impozeram, foi sómente uma pausa na febre das suas esperanças, retraidas para se renovarem com maior vigor em ensejo propicio á victoria; nunca significou fraqueza ou desanimo, e muito menos desprendimento ou apostasia por exigencias d'um egoismo commodo. Onde o idealismo se mostrou chimera, absoluta ou transitoria, cedeu, salvando invariavelmente o que do naufragio podia salvar, com uma dedicação e coragem indefectiveis. A natural e rara ponderação do seu temperamento guardava-lhe o heroismo da degeneração em temerarias arremetidas estereis, e, em meio da exaltação, livrou-o dos perigos que M.me de Stael apontava como fataes ao renascimento das sociedades europeias turvadas e em desordem: e assim nem «proclamou os principios d'um modo excessivamente incondicional», nem, muito menos, «acceitou os factos n'um espirito d'excessiva resignação com elles». Só a absoluta ignorancia dos acontecimentos, estreiteza manifesta d'entendimento ou uma perversão morbida do caracter propenso a enxovalhar toda a grandeza d'alma e a aviltal-a para a tornar sua igual, só essa miseria humana poderá achar contradicção entre o revolucionario destemido, o setembrista valoroso e o soldado da opposição ao cabralismo, que foi José Estevão, e o deputado, homem positivo e pratico, chamado a intervir na solução de problemas de mera mas urgente importancia administrativa, que apoiou, em 1852, o movimento chamado regeneração,--prompto, de resto, a combatel-o quando e onde se mostrou funesto, quando, pelo seu lado moral, se revelou o inicio entre nós da prevista «acceitação dos factos n'um espirito de excessiva resignação com elles», dando direito de cidade a fraquezas, medradas em volume e audacia no correr dos tempos até constituirem o deploravel imperio da corrupção, de que as gerações presentes agora colhem a ruina economica e a deshonra perante o mundo civilisado. Quem examinar com attenção, desprendida de preconceitos e suspeitas, as affirmações de José Estevão, no primeiro periodo da sua carreira politica, e as reclamações do parlamentar, no momento em que foi necessario olhar a serio para a restauração e progresso das forças economicas do paiz, não só immediatamente comprehenderá a diversidade de objecto que em duas epocas differentes sollicitou a discussão e a applicação das faculdades do tribuno, mas verá tambem, com uma evidencia perfeita, a unidade de caracter, superior e integro, que em toda a situação o manteve no mesmo logar. O que queria o setembrista? Queria «uma monarchia feita por nós, levantada nas nossas lanças, monarchia que tivesse suas raizes no coração do paiz e nos degraus de cujo throno se sentassem os officiaes da hierarchia social, e não as raças que a vaidade distingue: uma monarchia bella, generosa e forte como a juventude, sensata, economica e prudente, como a edade provecta[19]»: juiz só, a julgar só; um rei só, com ministros responsaveis, a executar só; um corpo legislativo só, a legislar só»[20]; «a extincção de todas as aristocracias e a propagação da unidade social»[21] ; «uma constituição popular; um rei sem arbitrio; uma representação extensa; uma familia social; nacionalidade segura; administração sem opprimir; auctoridade com confiança; centralisação com fóros; justiça com independencia; fazenda regulada; despezas com economia; tratados com industria; reciprocidade sem perdição; ordem sem enthusiasmo; e liberdade sem sophisma»[22]. [19] _Discursos_, pag. 90. [20] _Discursos_, pag. 27. [21] _Discursos_, pag. 86. [22] Vid. Sr. Marques Gomes. _L. c._, pag. 70 e seg. Tudo isto elle queria, e por tudo isto soffreu nas fadigas o nos riscos dos campos de batalha e nas desoladas amarguras do exilio, perseguido e odiado por aquelles cujo despotismo nefasto combatia. E tudo isto elle julgou realisavel, sem muito contar com a multidão de terriveis fermentos moralmente morbidos, que sempre se insinuam em todo o movimento politico e contrariam, desfazem e annulam a tarefa d'aquelles que se propozeram moldar as sociedades em formas de belleza estreme. O que encontrou foi a desillusão dos seus sonhos, ainda mesmo quando pareciam ter vencido e estarem prestes a dar ao paiz a fortuna por que elle anceiava. Imaginára uma perfeição moral e um equilibrio mental á sua imagem e semilhança, a mesma fé e isenção e coragem, ignorando o ser d'excepção que no seu peito habitava; e ficava prostrado de dôr, ao descobrir que esse paraiso terrestre se desvanecia, quando julgavamos abertas as suas portas, e que não havia modo de banir da nossa existencia em geral, e em particular da nossa politica, a quéda, o peccado, a baixeza explorando a generosidado e escarnecendo-a, a debilidade das resignações forçadas e os assaltos do desalento, um abysmo entre a aspiração e a realidade. Nem o seu proprio partido politico escapava ao contagio. Quando veio a julgal-o, verificou-lhe a impotencia e confessou que «sempre o achára leal, franco, valente e guerreiro, mas mais inquieto do que revolucionario, pouco substancioso, muito musical, com muitos hymnos e com muito pouca disposição de luctar arca a arca, peito a peito, com os abusos que era do seu dever combater e destruir. Tinha vivido bastante no meio d'elle, e desgraçadamente via que o partido progressista, quando ia ao poder, não ia para pôr em execução as suas ideias, mas para mostrar que não tinha ideias»[23]. [23] _Discursos_, pag. 278. A desillusão, no pungir do seu golpe, levou-o talvez bem proximo da injustiça. Porventura atribuiu a inanidade de companheiros inconsistentes e frouxos o que era apenas a imposição cruel e indeclinavel dos factos. E estranhou e lamentou, como infelicidade e máu sestro do seu gremio, o que era desgraça commum aos agrupamentos politicos e ás cousas humanas. Mas de todo o desastre cobrava animo. Não se quedava paralysado pelo extasi de triumphos ou desalentado pelo espectaculo d'infortunios. Porque ao fim de vinte annos de luctas politicas via reduzidas a proporções mesquinhas as conquistas do seu sonho, não cruzava os braços, abandonando o campo a inimigos, mais persistentes e activos na ruindade do que os bons nas obras de salvação. O abandono poderia ser solução para ambições ephemeras dos temperamentos vulgares; não o tolera, porém, o espirito heroico. Emquanto houver a disputar um beneficio, uma esmola, um lenitivo a tormentos, haverá eternamente motivo de combater. Hoje bate-se por uma cidade, amanhã por um castello, depois por uma choupana; hoje desembainha a espada por Deus, amanhã por sua dama, depois pelo rei, e depois ainda pelo infimo servo: jámais se convence de que o seu braço possa jazer inerte, deante do si tem continuamente visões que lhe exigem o esforço. Em 1852 os tempos iam bem mudados do que haviam sido em 1838. As liberdades publicas e as garantias constitucionaes, embora claudicantes e mutiladas, tinham finda a jornada, acabando por alcançar nas leis do paiz os mediocres logares d'uma acanhada victoria. Mais não tinham podido conseguir, e o resto, aquillo a que debalde haviam aspirado, já não encontrava paladinos que partissem a disputal-o; de tanta vez tentado e tanta vez vencido, entrava para os mais timidos e menos credulos no rol das utopias. Comprehendia-o o tribuno, e com a sua sorte se resignava; porque elle tambem declarava bem alto, na presença dos representantes da nação, que «não estava disposto em nome de palavras, em nome de tradições, a applicar o seu fraco talento e a sua saúde a revoluções sem substancia, a ministerios sem principios e a coalisões sem necessidade. Não estava para isso. Isso não era vida para um partido forte e robusto. Preferia antes reduzir-se á sua pobre e insignificante individualidade, do que andar naquellas estafadeiras politicas em que se estragam as faculdades e não se faz nada para a causa publica»[24]. [24] _Discursos_, pag. 309. Do que agora se tratava, a exemplo do que se fazia nas outras nações da Europa mais adeantadas, era de procurar a paz e o pão para o malfadado povo portuguez, exausto de luctas vãs em que dissipava as forças e a fazenda; do que se tratava era de pôr em ordem e prospera a casa arruinada pelos devaneios de correrias politicas infecundas, restituindo-lhe muitos bens perdidos e acrescentando-lhes o valor por um cultivo mais esmerado. Pelo correr natural dos acontecimentos, a riqueza constituiu-se para nós, como para muitos outros povos, o primeiro elemento de fortuna e grandeza, e José Estevão, não desconhecendo a situação nem podendo ficar indifferente á atracção d'esse explendido crescer dos recursos economicos d'aquelle momento, persuadido de que era mister para a sua patria render-se ás condições e exigencias da nova phase do liberalismo, inclinou-se a coadjuvar aquelles nos quaes reconheceu arte para edificar o quer que fosse d'uma utilidade manifesta, duravel e fecunda, entre o marulhar tremendo da corrupção dos homens e da contingencia das cousas. O soldado tornava-se obreiro, deixaria a espada pelo alvião; e trocava-se o manto de magistrado pela blusa do trabalhador. O guerreiro surgiu-nos transformado. Mas não mudou nem de logar nem de coração, que sob todo o vestido era o mesmo, inviolavel; não se turvou a limpidez da energia moral com que manejou ambos esses instrumentos da felicidade humana, em ambas as situações e attitudes foi identico a si mesmo. «Estava a desapparecer totalmente», disse, «a geração que inaugurára a liberdade na nossa terra. Para os feitos e para os homens d'esse tempo começára já a posteridade. Á pressa, no ultimo quartel da vida, procurava essa geração resgatar o tempo perdido em banalidades revolucionarias, deixando algumas obras que lhe abrandassem a severidade dos vindouros»[25]. E elle vinha pagar o seu tributo á redempção com a mesma generosidade com que o pagára ás illusões. Tambem caíra em falta; justo era portanto que partilhasse tambem da penitencia. [25] Sr. Marques Gomes. _L. c._, pag. 149. No mais vivo ardor das conquistas liberaes, em 1839, prosentira já que uma segunda tarefa nos esperava; tinha bem presente a magnitude do problema economico e afigurava-se-lhe que «viver d'industria era o grande pensamento d'aquelle seculo»[26]. E dezoito annos mais tarde, em 1857, pretendia que «os homens de todos os paizes que por diversos modos estão empenhados na civilisação e no progresso, os industriaes mais activos e mais emprehendedores que querem vêr postas por obra as suas concepções... o que teem em conta são governos solicitos, que aproveitem os paizes que administram, que os fazem cultivar e produzir quanto cabe em suas naturaes faculdades»[27]. [26] _Discursos_, pag. 43. [27] _Discursos_, pag. 319. Por isso applaudiu, quando despontaram, os actos governativos que inauguravam a nova era. Louvou a creação do ministerio das obras publicas e enthusiasmou-se pelos caminhos de ferro. «A creação do novo ministerio das obras publicas e industrias applica ao fomento do paiz os cuidados e o prestimo da auctoridade publica. Isto importa a medida do governo, pois quanto existia na administração publica para promover as industrias ou abrir communicações era por tal modo desmaselado, rotineiro e burocratico, que quasi se podia dizer que aquelles interesses sociaes estavam eliminados da gestão governativa, e entregues á sua propria força, escassa as mais das vezes para lhes dar uma existencia mesquinha, e quando muito, bastante para as arrastar a esforços inuteis e desconcertos deploraveis. O caminho de ferro de Lisboa ao Porto é a maior medida que se podia tomar para imprimir nova vida a esta nação... é o primeiro manifesto de adhesão á moderna economia das nações»[28]. [28] Artigo publicado na _Revolução de Setembro_ de 2 de setembro de 1852. Vid. Sr. Marques Gomes. _L. c._, pag. 123. Da bondade e legitimidade da obra a que José Estevão agora dedicava o talento, e na qual era um trabalhador de extraordinaria importancia, não tinha duvida. O passado e o presente não se contradiziam, completavam-se. Um incidente, um novo aspecto, e passageiro, da administração e da politica nacional,--não era outra cousa a regeneração; de modo algum prejudicaria a inteireza do sentimento de quem sem reservas e constantemente consagrára á sua patria todo o coração. A simplicidade da situação moral era perfeita. E, na carta que dirigiu aos eleitores e foi escripta em Aveiro em fins d'outubro de 1852, reconheceu-a com uma lucidez e escrupulo que desvaneceriam toda a hesitação d'espiritos menos promptos em penetrar os motivos da ultima attitude do setembrista exaltado. «Senhores eleitores», dizia, «não busqueis por agora em mim o homem politico. Esse não sei se morreu em alguma das batalhas ultimamente pelejadas pela liberdade ou se come no exilio o pão estrangeiro. Quem se vos apresenta, é simplesmente um homem ingenuo e um cidadão, que julga ser util ao paiz, encaminhando os negocios do estado pela vereda que vos indicou, e que se paga de todos os trabalhos e desgostos da vida publica com a honra de merecer os vossos votos. E, para nada vos encobrir, esse mesmo homem, apezar das suas convicções profundamente democraticas, chega com as suas sympathias a um dos lados do throno. A ninguem peço venia para esta respeitosa affectuosidade, porque para todo o homem livre a religião das ideias e a dos sentimentos são dois cultos independentes e tolerantes»[29]. [29] Vid. Sr. Marques Gomes. _L. c._, pag. 125. Quando morreu a rainha D. Maria II, José Estevão, n'um dos seus muitos impetos d'eloquencia, que eram ao mesmo tempo a apreciação das obras alheias e um exame de consciencia _coram populo_, a justificação do seu passado e a razão do presente, disse-nos como no seu espirito se lhe representava o desenrolar da historia politica nacional nos annos em que n'ella influira tão poderosamente; d'onde se partira, em que altura nos encontravamos e para onde convinha que nos dirigissemos. A passagem é de superior importancia para elucidação da sua vida: «Honrada familia de liberaes, d'esses liberaes iniciadores, homens crestados da polvora, macerados de fome, amarallecidos pelas masmorras, torturados pelo exilio, e que espalhados na terra que é duas vezes nossa, uma pelo direito do berço, outra pelo direito do resgate, conservastes sempre immaculado o dogma, a doutrina, por que tanto sangue e lagrimas se derramaram! Estaes, nobre familia, bem rareada, bem reduzida, bem proxima a sair inteiramente do livro dos vivos, e entregar á nossa gente o fructo das nossas fadigas, das nossas dores e das nossas gentilezas... Mas todas estas mortes são glorias, são triumphos,--glorias, triumphos para o que ha no mundo verdadeiramente grande, alto, sublime,--a sorte dos povos e os progressos da humanidade. Foi-se o legislador e o capitão da liberdade, e a liberdade não pereceu com elle. Vae-se a rainha a cujo direito dynastico a liberdade se amparára, e a liberdade fica vivendo na sua propria vida. As instituições teem entre nós resistido por longo tempo á acção desregrada dos partidos, á ambição turbulenta dos estadistas, ao desleixo governativo, ás corrupções desaforadas, ao desequilibrio dos poderes, ás exaggerações populares, ás restricções governamentaes. As liberdades publicas, por vezes oppressas e cerceadas, quebraram afinal todas as prisões, restabeleceram todo o seu poderio, e nem mesmo nos dias de maior provação esconderam o seu direito, nem appareceu alguem que se atrevesse a negal-o despejadamente... Mas a morte da rainha é uma grande admoestação para os partidos. Façamos todos exame de consciencia, já que Deus nos avisou n'um dos poderes da terra. Os partidos tambem teem poder, tambem teem vida, e são chamados a contas. É no interior dos seus archivos, e não sobre a sepultura dos reis, que se faz o inventario das prosperidades dos povos. Acabou-se já um reinado depois do systema constitucional, e se foi pequeno para a vida da rainha defuncta, não o foi para o tempo que costumam passar no throno as testas coroadas. Que fizemos durante esta epoca? São desenove annos preciosissimos pelos acontecimentos que n'elles correram, pelas descobertas que durante elles se fizeram, pelos beneficios sociaes que se inventaram, pelas uteis emprezas que se levaram ao cabo. Aproveitámos nós todas estas vantagens, imitámos todos estes exemplos? Comprehendemos o espirito do nosso seculo? Démos ao paiz todos os melhoramentos que lhe podiamos dar? Levantámos cada classe á altura a que ella podia subir? Honrámos a geração a que pertencemos, a nação que nos deu o nome? Responda cada um a si, responda á sua consciencia que é o mesmo que responder a Deus. E seja o que temos feito aviso para o que temos de fazer... Estamos em regencia... O regente sabe melhor do que ninguem o que nos falta... Um regente plantou n'esta terra as liberdades publicas, plante outro entre nós a civilisação sem a qual ellas não podem arreigar-se nem medrar. A obra é de todos e para todos. Empenhemo-nos portanto n'ella com animo leal e resoluto»[30]. [30] Artigo publicado no _Campeão do Vouga_ em 17 de novembro de 1853. A estrada talvez se lhe afigurasse plana e facil, mas, ai d'aquelle em quem encarnou o idealismo, heroico ou sonhador! Cada esperança, cada amargura; em cada passo no caminho da aspiração o assaltam e torturam desillusões. A candura de José Estevão representára-lhe na regeneração uma empreza, honesta e chã, de fomento da riqueza, e pelos meios que a epoca aconselhava e eram manifestamente convenientes. E, sem duvida, deshonesta não era na intenção e lisura com que concedia á miseria dos homens, á satisfação de muitas das suas fraquezas, aquelle quinhão indispensavel para que se mantivessem quietas e não fossem impedimento á realisação de mais altos destinos. Um dia viria, porém, em que, pelo crescer d'influencias perniciosas, os termos d'esta perigosa arte de governar haviam de inverter-se; e, depois de se haverem empregado as fraquezas dos homens em beneficio da nação, depois de se usar a corrupção para alcançar o bem publico, aconteceria que a nação seria explorada em beneficio das fraquezas e o bem publico sacrificado á corrupção. Portanto, errára? perguntaria ao tribuno a consciencia atribulada. E uma voz intima o tranquillisava: «Folheio os fastos parlamentares, ás vezes sem intuito, ás vezes com o intuito certo e determinado de procurar esclarecer-me n'uma questiuncula, de saber um ou outro facto; nunca me dou a estas buscas que não traga de lá a mais intima, a maior satisfação que póde trazer um homem probo e um homem de consciencia; acho a minha coherencia, toco-a, encontro-a, sae-me a cada pagina de cada livro; e eu, tendo uma fraca memoria de todos os meus actos, respondo pela logica d'elles, porque confio no meu caracter e na minha consciencia»[31]. [31] _Discursos_, pag. 189. «Antes da dissolução da camara era equivocamente regenerador. Mas, depois da dissolução, depois que achei no governo caracter politico, entidade politica, tenção politica, plano politico, coragem e decisão de iniciativa, decidi-me e fui regenerador até que a regeneração acabou, porque hoje essa denominação de regeneração e não de regeneradores, tudo isso até certo ponto póde servir para fins mas não diz nada»[32]. [32] _Discursos_, pag. 274. Aproximava-se aquella terrivel «conformidade excessiva com os acontecimentos» que M.me de Stael promettera e fôra como uma pesada maldição. Imaginára José Estevão uma transformação politica sem perda do caracter, o cuidado e zelo dos interesses economicos sem preterição ou quebra da elevação moral, a riqueza aureolada de nobreza e isenta de toda a mancha de degradação em sordidez; e o que a situação lhe offerecia era a dissolução do caracter em proveito de fatalissimas baixezas, que iam a tornar-se invasoras e absorventes. Não era isso que elle sonhára e esperára, porque muito nobremente considerava que «os partidos teem tanta difficuldade em viver como em envelhecer, mas o envelhecer é uma cousa que custa muito para se fazer com dignidade. Um partido tem de se sujeitar tambem a esta condição, mas envelheça com amor ás suas ideias, com amor ás suas tradições e aos seus principios»[33]. Comprehenderia a necessidade da transformação que o correr dos annos importava, foi a isso de certo que elle chamou o envelhecer e declinar; repugnava-lhe porém a apostasia, e contra ella protestava. [33] _Discursos_, pag. 275. Naturalmente, porque em todos os agrupamentos politicos tinha sentido, juntando-se e atraiçoando-se, a perfidia e a sinceridade, a infidelidade á causa publica por cobiças deprimentes e a devoção generosa, isenta e nobre aos interesses da humanidade e do povo, desenganou-se por fim da virtude dos partidos e confiando ainda no civismo e na rectidão onde quer que habitassem, afastado da vileza dos bandos mas crendo, incorregivel, na pureza de consciencias d'eleição, invocava a união e esforço dos homens de boa vontade para salvação da patria. E na _Carta aos eleitores_, de 15 d'abril de 1861[34], deixou-nos esboçado este seu ultimo sonho. [34] Vid. Jacintho Augusto de Freitas Oliveira, _José Estevão_. Lisboa, 1863. Pag. 349. «Para o futuro», dizia, «pertencerei de certo ao partido, que começa a formar-se, que já está crescido, que vive entre nós sem termos dado por tal, que nos inspira sem nós o sentirmos, e que mesmo do berço dirige as coisas publicas e domina até os homens da mais forte vontade. Este partido será um producto de todos os partidos que ora existem; ainda com um nome politico mas sem substancia doutrinal, producto alcançado, não pelo concerto de individualidades, de coalisões ephemeras, de parcerias ambiciosas, mas pela trituração da opinião publica, pela acção da consciencia universal, pela solibilidade das pequenas paixões e das importancias artificiaes no grande e irresistivel sentimento nacional, que transforma tudo quanto lhe convém assemelhar, e destróe todas as heterogeneidades que lhe resistem, ou que lhe não servem. Este partido não se parecerá em caracter com nenhum dos partidos existentes, nem se filiará nas glorias de nenhum d'elles, nem será um engenho politico incapaz d'acção propria e embargante da acção dos outros, em seu gremio ocioso e solipso, que affaste e maltrate como apostatas todos os que se não curvam ás suas idolatrias. Este partido será a ligação de todas as capacidades prestaveis para a governação publica, tendo por intuito a civilisação do paiz em todas as suas formas. Se este partido fosse obra dos homens ou a sua creação podésse ser contrariada por elles, talvez se não fizesse; mas esta ordem de cousas surge, rebenta da nossa situação.» De desengano em desengano, chegára á condemnação do partidarismo e á sua expropriação por utilidade publica. Outra cousa não era esse derradeiro sonho d'um partido totalmente expurgado das doenças que os caracterisam, a todos, e apenas sublimado nas virtudes que por vezes os nobilitam. A grandeza da aspiração obcecava-o; e afferrava-se a procurar no mundo o que sómente dentro do seu peito existia. Desoito mezes depois de conceber essa ultima chimera, surdo ao rumor crescente dos interesses mesquinhos e vis em que a visão liberal se dissolvia, tinha morrido. Se vivesse, assistiria, não «á ligação de todas as capacidades prestaveis para a governação publica, tendo por intuito a civilisação do paiz em todas as suas formas», mas á desagregação da grande maioria das capacidades, determinada pela satisfação da miseria politica em todos os seus modos. Como o grande capitão da India, «mal com o rei por amor dos homens, e mal com os homens por amor do rei», José Estevão, incapaz de abdicar dos principios e aspirações que o exaltavam no anceio d'uma era politica de bemaventurança, e simultaneamente comprehendendo a necessidade, por condição humana e imposição da realidade, de tolerar e conceder direito d'existencia de portas a dentro do forum a paixões que lhe repugnavam e o incendiavam em revoltas sagradas, choraria amargamente os novos desenganos que a politica lhe reservava; e, não podendo conciliar o que é de sua natureza irreconciliavel, mal com as illusões, rainhas do seu coração, por causa do mundo que ellas haviam de regenerar e não regeneravam, e mal com o mundo, por causa das illusões cujo imperio elle havia de respeitar e incessantemente desacatava, proseguiria na fé dos apostolos e na tristeza dos vencidos. Naufragio algum o curaria d'illusões. Haviam de renascer, e era justo que renascessem. Embora não lhes assistisse aos ultimos triumphos, assegurava-lh'os a crença e a justiça. Das que o possuiram, nascidas n'um rubor d'aurora e desfeitas muitas n'uma amortecida pallidez de crepusculo, ficaria na terra um suavissimo rasto de luz. Foram ellas, essas illusões da epopeia liberal, que, embora se dissipassem quasi estereis para as garantias da liberdade individual e para o reconhecimento das liberdades publicas, conduziram ao cumprimento de tão altos deveres de humanidade, como a abolição da pena de morte, e ao fortalecimento de tão solidas bases democraticas, como a abolição dos morgados e o regimen da pequena propriedade, efficazmente protegido pelo systema de successão e partilha adoptado pelo codigo civil. Não foi baldado o heroismo dos que por ellas combateram. IV Em 1840, o oraculo mysterioso da ordem, invocado por José Estevão e interrogado sobre o numero de partidos que havia na camara dos deputados, respondeu: «No paiz ha dois partidos e duas facções, e n'esta camara um partido e uns poucos d'illudidos[35]». [35] _Discursos_, pag. 88. Quem tão solemnemente lhe ouvia os segredos, estaria entre o numero dos illudidos, por decreto dos avisados e prudentes que combatia, senão até pelo reconhecimento intimo, esclarecido em repetidos desenganos. E, todavia, esse filho da illusão que como ella deveria ser innocente e ephemero, o cavalleiro phantasma que com suas correrias impetuosas surgia em meio de todas as pelejas e deveria confundir-se e afugentar-se facilmente na supposta inconsistencia do seu ser, voltava sempre, atraiçoando-a e negando-a de continuo, terrivel e audaz, renascido das tenues sombras em que o julgavamos dissipado, para semeiar o terror entre os fortes e os grandes, verdadeiros potentados da terra. Tremiam dos seus vaticinios e anathemas os que mais seguros se reputavam; e os mais frios e incredulos erguiam-se da prostração e desanimo, despertando pela harmonia d'aquella voz divina. O illudido, que pela fatalidade da sua natureza viéra ao mundo condemnado á derrota, era a cada passo o vencedor, exaltado pelo clamor das multidões, derrubando na passagem muita grandeza falsa, desfazendo idolos e reduzindo a pó mentirosas virtudes que pretendiam cobrir-se com os trajos da dignidade. Singular poder! Sendo tamanho, profundamente temido dos que flagellava e ardentemente adorado dos que protegia, é na sua constituição d'uma tão homogenea espontaneidade, d'uma ingenuidade tão constante e perfeita, que quasi escapa á analyse e se torna impossivel decompol-o e observal-o nos seus elementos. Não póde sem impropriedade ou violencia applicar-se a palavra arte á eloquencia de José Estevão. Arte oratoria, esta disposição reflectida e determinada dos pensamentos e a escolha meticulosa de termos que os exprimam, tendo em attenção o effeito que hão-de produzir sobre o ouvinte e amoldando-se para esse fim a caracteres e tendencias psychologicas, previamente estudados e astuciosamente explorados, o calculo da impressão,--essa arte não a teve José Estevão. De todo a desconheceu. A sua palavra corre como correm os rios, rebentando onde um impulso natural os fez rebentar, sem nada cuidarem dos obstaculos ou inclinações propicias que os esperam, escavando aqui e amontoando acolá, ora derrubando e destruindo, ora fertilisando e fazendo crescer, resultando de tudo afinal belleza e explendor, dos destroços e ruinas como das creações magnificas. Logica, gradação d'argumentos por sua progressiva intensidade, crescendos de força arranjados com sabedoria, o caminhar a uma méta que nunca se perde de vista e para a qual nós dirigimos os passos, regulando-os e guardando-lhes toda a viveza e celeridade para o derradeiro lanço decisivo, a famosa arte de persuadir, levada ao fastigio em remotas eras por talentos assignalados com justiça nos annaes da humanidade,--isso é cousa que em vão se procurará nos discursos de José Estevão. Muitos d'elles e dos mais celebres podiam baralhar-se, trocando o fim pelo principio e o meio pelos extremos, e ficariam igualmente bellos, sem perderem um atomo da energia d'acção sobre o nosso espirito. Examinando-os, teremos talvez de concluir que esse homem que tantas vezes persuadia e sempre subjugava, não fallou para persuadir nem para subjugar, mas apenas para dizer a verdade e por amor d'ella, para a dizer tal qual no seu entendimento e sobretudo no seu coração se revelava, por uma necessidade indomavel e intima, e não para no impulso prender ou esmagar os estranhos. Por vezes, poderemos convencer-nos com boas razões de que quem tão duramente castigou e tão nobremente enalteceu, nunca pensava em castigar ou enaltecer o quer que fosse, e apenas buscava dar satisfação a surdas e indistinctas exigencias da consciencia, que não lhe permittiam ficar quieto e calado. Se esse modo de ser redundou em uma arte sublime, não foi por seu querer, não foi porque o procurasse; e tudo quanto a critica poderá descobrir na observação e meditação das suas obras, será, não a sua arte, que a não teve, mas os caracteres e fundamentos da sua eloquencia, o que é differente. Gabavam-lhe a imaginação. Era famosa. De facto, abundou no seu temperamento e sempre lhe assistia, nas cousas graves da vida e nas mais vulgares, no convivio quotidiano com os amigos e nos grandes lances da fortuna nacional. Fallando de D. Fernando I, no parlamento, ia dizendo:--«Este rei fraco e versatil tinha uma filha formosa...». Corrige-lhe o erro Almeida Garrett.--«Não era formosa», diz-lhe n'um aparte. «Não seria», replica de prompto José Estevão. «Julguei que fosse contra as prerogativas da corôa chamar feias ás princezas[36]». [36] _Discursos_, pag. 118. O segundo discurso do Porto Pireu é uma torrente de imaginação, rebentando em borbotões, incessante, colorindo e animando toda a oração, e dando-lhe um relevo primoroso. A historia da _ordem_ e a enumeração dos que José Estevão ia vendo no Pireu, incidentemente, em diversos momentos do discurso, marcam até hoje o apogeu do explendor do parlamento portuguez, e não é facil conceber como nem quando será excedido, porque soffrem sem deslustre a aproximação das mais bellas paginas d'esse genero legadas por qualquer epoca ou civilisação. «Passo á historia da _ordem_», disse o tribuno. «N'ella tudo é grandeza, doçura, prazer e maravilha. Assim a empreza fosse facil! Que lingua póde revelar os seus mysteriosos trabalhos, descrever com delicadeza a efficacia portentosa dos seus meios, e a pompa dos seus resultados? Que engenho póde comprehender todos os phenomenos da ordem, e abranger a extensão dos seus dominios? Quem póde, arrombando os umbraes da eternidade, ver a ordem, luctando com o cáos, obrigar a natureza ás leis da harmonia? «A ordem, primeiro, encerra no centro d'esse cáos as materias vulcanicas, essas massas anarchicas da natureza, depois empola os montes, escava os valles, encana os rios, recolhe os mares, azula o céu, alumia a terra, suspende os passaros nas azas, equilibra os peixes no nado, levanta nos pés os outros animaes, tira do pó o rei gozador d'estas maravilhas, da costella d'esse rei a rainha sua companheira, e inspira a esse par ditoso o seu primeiro beijo, beijo creador e fecundo, de que a nossa vida é um presente. Ingratos! Devemos a vida á ordem, e negamos-lhe os respeitos que ella merece! «Por outro lado, quem forjou a espada organisadora de Nemrod? A ordem. Quem salvou das aguas do Tibre os infantes fundadores de Roma, e com elles os fados do Lacio? A ordem. Quem ensinou os caminhos, quem conduziu atravez de todas as difficuldades os barbaros do norte? A ordem. Quem fez dum almocreve arabe o chefe duma religião? A ordem. Quem deu a Carlos Magno a sua poderosa espada? A ordem. Quem compoz o balsamo de Ferrabraz? A ordem. Quem fez as botas de Carlos 12.º o chapéu de Henrique 4.º e o casaco de Napoleão? A ordem. Quem finalmente inventou as bellas artes, a musica, a pintura e a esculptura, e a grande e nobre arte da gastronomia? A ordem. Ingratos! E devemos tudo á ordem, e não lhe damos a consideração de que ella é credora! «Quando a expedição restauradora, epilogo romantico de esperanças, de receios, de saudade e valor, quando essa expedição que em si encerrava maiores fados que a náu sagrada dos athenienses, atirou peça de leva nas lagoas dos Açores, quem se poz ao leme dos seus navios? A ordem. Quem abateu os mares, quem enfreou os ventos, quem fez singrar os escaleres, quem deu a mão ao soldado para saltar em terra, quem tangeu os clarins, quem rufou os tambores, quem limpou o fusil, quem fez rodar o canhão? A ordem... Está decidido; não ha outro poder na terra senão a ordem. Todo o mundo material e politico lhe pertence. Entelechias de Malebranche, turbilhões de Descartes, monadas de Leibnitz, gravitação de Newton, principio utilitario, escola sentimental, força de costumes, educações religiosas, genio de legisladores, tudo isto é nada, e o mundo não lhe deve nem bem nem mal. Só a grammatica se póde apresentar como rival da ordem, e disputar-lhe o imperio do mundo; tambem ella tem pretenções anteriores, grandes e importantes, e já um seu predilecto as sustentou com gravissimas razões.» «Sabeis vós os que estão no Pireu? São aquelles que com uma carta de recommendação mercantil, assignada pela ordem, cujas letras no mercado politico estão agora valendo tanto como os titulos azues na nossa praça, julgam converter o paiz em uma feitoria sua de poder, alcançando que todos os ministerios lhes venham sempre consignados... São os que tendo feito alguns lucros de reputação, quando a praça tinha menos negociantes, julgam que podem esperdiçar o ganho, reputando que alguns papeis de credito, que ainda teem em suas carteiras, são effeitos de grande valor, e não vendo já sobre os seus escriptorios o sello da quebra, e a impossibilidade de apurar da massa fallida sommas que possam exceder ás quantias necessarias para o pagamento priviligiado de caixeiros, creados e outros que lhe ajudaram a grangear suas poucas riquezas scientificas. «Sabeis vós os que estão no Pireu? São aquelles que vem despachar ás alfandegas da publicidade estes fardos avariados da historia, sem o sello da critica, e expôr á venda no bazar do parlamento, em vez dos panos finos da verdade, as baetas do sofisma. «Estão tambem no Pireu os que, vendo voltar dos bancos das eleições muita embarcação carregada de quartolas de confiança, de barris de votos, de dornas d'actas, e tendo muitas vezes emprehendido sem successo esta pesca d'alto com perda de barcos e apparelhos, agora julgam fazer-se senhores do ganho de toda esta especulação, fingindo-se caixeiros e guarda-livros da nação, e querendo comprar por sua conta todo o pescado, passando para tudo isto lettras em nome d'ella, com o mesmo direito com que uma vez tres alfaiates inglezes proclamaram em nome da Grã-Bretanha. «Estão no Pireu os que, considerando a corôa como uma mina, se associam a todas as campanhas nacionaes e estrangeiras para a explorar, meditando largar a empreza logo que a veia estiver pobre, e as galerias de mineração inundadas... Estão no Pireu os que, depois de terem feito suas genuflexões á estatua de ferro de usurpação, foram para a emigração adorar algumas estatuas de ouro que por lá se levantaram, e que depois se recolheram ao paiz para se associarem, não com aquelles que haviam sustentado o colosso da tyrannia, julgando que combatiam pelo bem da nação e pelos direitos da realeza, mas com os que sem acreditarem causa alguma as seguem todas, que teem a chronologia das desgraças publicas marcada no peito com as insignias das mercês, e que havendo levantado o usurpador do pó do nada, depois que tiraram todo o partido dos seus maleficios, procuraram minar o seu poder para servirem outro senhor que melhor lhes pagasse. «Estão no Pireu os actores de todos os entremezes, comedias e tragedias ministeriaes, que vestem com a mesma facilidade a jaqueta de gatuno, o manto do rei tyranno, e o chambre d'aulico retirado, sem lhes importar os apupos da plateia e as censuras dos litteratos, procurando só que haja boas enchentes, que as escripturas da empreza sejam cumpridas, embora todos os dias mudem os emprezarios. «Estão no Pireu os que, deixando o licito commercio da virtude e da honestidade, se pozeram a traficar em galões, plumas e lantejoulas, e que, sollicitando um logar nos mercados das côrtes estrangeiras, para irem expor á venda suas fazendas, o não poderam alcançar. «Estão finalmente no Pireu os que vieram para a casa commercial Revolução & Companhia, como a mocidade do Minho vem para as lojas do Porto, e que, tendo feito alguma fortuna pela bondade dos patrões, agora os perseguem, desacreditam e procuram arruinar por todo o modo. «Mas quem é toda esta gente que se acha no Pireu? Que está ella lá fazendo? Foi um sonho! No Pireu só vejo uma companhia de trabalhos braçaes, que corre avidamente á praia, quando chega alguma carregação ministerial, e que carrega por todo o preço os fardos de que ella se compõe, qualquer que seja a firma commercial com que venham marcados[37].» [37] _Discursos_, pag. 91, 93, 95, 101 e seg. Foram longas as citações, apparentemente abusivas. Mas quem as houver seguido, logo comprehenderá que constituem documentos essenciaes da nobreza de José Estevão, pergaminhos inseparaveis do seu nome, onde quer que elle appareça. A fulguração do seu genio deslumbra e entontece n'esses momentos. Quando, porém, se lhe tornou necessario passar da reproducção pitoresca do presente á resurreição da simples verdade historica, quando conveio e lhe aprouve trocar pela contemplação grave d'outros tempos a feira de cobiças e vaidades, a que assistia e de que pintou tão completamente a diversidade de gentes e trajos, e a azafama e tumulto de mercar e ganhar, encerrou largos horisontes em curtissimos quadros, favorecido sempre por igual poder de imaginação. Em breves traços exprimiu e resumiu crises profundas, condensando n'um rapido lampejo uma situação moral, economica, politica e militar, sem preterição dum só dos seus caracteres e pondo-os todos manifestos com uma transparencia cristallina. A imaginação puramente descriptiva não ficava áquem da imaginação creadora. A renovação do acontecido e distante não foi menos perfeita do que a obra de phantasia, na qual traduziu a realidade presente, moldando-a, vestindo-a e compondo-a em formas desusadas e inesperadas. N'aquelle mesmo discurso do Porto Pireu, rememorando as circumstancias do paiz no principio do seculo XIX, dizia: «Depois d'estes successos, (a invasão franceza e factos correlativos), sabido é como a flôr da nossa juventude, o ouro dos nossos cofres, a paz dos nossos campos, a gala das nossas cidades, o sangue dos nossos soldados, a devoção dos nossos povos, se empenharam pela destruição do poder colossal do imperio. Sabido é como a Inglaterra considerou pouco estes esforços, depreciou o valor d'estes sacrificios e calou a gentileza das nossas armas.»[38]. [38] _Discursos_, pag. 132. Avalie-se por este mero exemplo, escolhido quasi ao acaso, a destreza e a robustez do gigante. Cada palavra vale uma pagina. Maravilhosa capacidade de condensação! Tudo o que um instante temeroso na historia dum povo póde trazer de inquietação, de ruina, de dedicação, de valor, de perfidias e ingratidões, todo o abalo e commoção dos lances de guerra, tudo alli resurge tirado da obscuridade por um singelo e sereno clarão. Não basta, todavia, a imaginação para base de tão extenso e duradouro poder sobre os homens como aquelle que José Estevão em sua vida exerceu. Não é sufficiente para transformar n'uma arma penetrante e inflexivel as simples considerações d'um orador. A imaginação poderá provocar a admiração e conquistar celebridade, mas não basta para constituir auctoridade; e o que José Estevão alcançou, unicamente pela virtude do seu verbo, foi uma força excepcional d'influencia sobre o espirito, consciencia e acções d'aquelles que de perto ou de longe o escutavam. A imaginação poderá captivar pelo capricho dos seus vôos e revelações, por uma rapida atracção transitoria, mas não logrará conferir um imperio permanente e efficaz; isso demanda laços mais resistentes e susceptiveis de supportarem a acção do tempo sem afrouxarem; e o imperio de José Estevão prolongou-se por toda a sua existencia, até á morte. A imaginação, por isso mesmo que se expande em brilho, esváe-se no contacto de elementos d'energia menos fugaz, não resiste d'ordinario á tenacidade penetrante da reflexão, que nunca deixa de lhe seguir o rasto, para o embaciar e frequentemente para de todo o apagar. Por muito realce que á obra de José Estevão houvesse dado, não podia ser ella explicação basilar da sua inalteravel efficacia. Os fundamentos d'aquelle prestigio incomparavel teem d'assentar em terreno mais solido do que esse pulverulento e doirado em que a phantasia se dilata. Notemos desde já a feição mais accentuada da imaginação de José Estevão; attente-se no seu caracter e no objecto que preferia. Talvez isso nos inicie na comprehensão da sua força. Não se detem e espraia na embriaguez dolente de prolongadas cadencias musicaes, não se adelgaça em melodias languidas, nem se estende em cavas sonoridades retumbantes. É viril e austera. Ruge como o estampido dum roble que se despedaça; não verga como o sibillar ondeante d'um canavial. É magestosa e grande; não se amesquinha a recortar frivolidades. Depois, que procura? Os traços comicos dos homens e das cousas, para os expor ás gargalhadas d'um publico ávido de folgança e avesso a tomar a vida a serio? Não. É evidente que de passagem os toca bastas vezes, accidentalmente; um espirito da sua pujança e uma sensibilidade tão aguda como a sua, que a nenhuma impressão ficam de todo estranhos, percorrem a escala inteira das emoções. Mas são incidentes, verdadeiros incidentes, notas passageiras, em que não insiste nem procura fazer insistir os que o ouvem. O que a imaginação de José Estevão procura constantemente, o objecto que mais lhe apraz e em que de preferencia se quêda e escava, é a pintura dos caracteres, a investigação dos mobis moraes que nas acções humanas se occultam e as dirigem. N'aquelles mesmos trechos do discurso do Porto Pireu que acabamos de repetir, no extenso ról dos mercadores que enxameiam na praia, cada um leva no rosto, taes quaes elle lh'os estampou, os signaes certos, a indicação segura do credito que merece, das baixezas que praticou e dos contractos infames a que se presta e em que sonha. Com o resto prendeu-se pouco; não lhe importa a gentileza da figura ou a deformidade do corpo, que a graça ou a fealdade virão do intimo, e é a descobril-o que se applica com ardor. Os factos e os homens não são cousas que tenham vida sua, na essencia do conceito e arte de José Estevão; hão-de tiral-a do valor moral que possuirem; e é para o aquilatar que a sua imaginação se exalta a reconstituir factos e homens e lhes põe a nú e em relevo a estructura. Junte-se a esta uma outra circumstancia notavel, e estaremos porventura proximos a penetrar o segredo da magia d'aquella fascinação soberana:--o ataque é habitualmente directo. Ironia, astucias vulpinas, surprezas de flanco, disfarçadas, se por acaso surgem, aqui e além, logo as abandona e troca por armas mais a seu molde. O espirito heroico compadece-se mal com esses engenhos de malicia, invenção de timidos e defeza de cobardias que não se afoitam a entrar em campo raso. Combate peito a peito. Nem procura escudos para o seu, sempre a descoberto, nem tambem se deleita a arranhar o adversario e a cobril-o de sangue á flor da epiderme, sem lhe tocar as entranhas. Vibra os golpes ao coração, e por isso que lh'os conheciam e sabiam que eram mortaes, por isso os temiam tanto. A ninguem poupava a exprobração d'erros e fraquezas, se se convencia de que tinham sido aggravo á causa publica. Toda a torpeza e mentira desmascarava, sem uma funesta piedade, sem attenuantes nem dissimulações que, no tremor duma consciencia persistentemente vigilante, se converteriam de prompto em suspeita de cumplicidade. Que ha pois afinal no fundo de todo esse movimento brilhante da eloquencia de José Estevão? Varrida a arena dos fumos do combate, que ficou de inexpugnavel no seu logar, que fortaleza prostrou tantos inimigos, e desbaratou e poz em fuga tão numerosas hostes e luzidas? Uma assombrosa intuição moral, a facilidade de lhe exprimir as revelações com uma concisão e uma exactidão maravilhosas, a coragem de as dizer alto na presença d'aquelles a quem mais feriam, a absoluta isenção com que só por amor da patria assim procedia,--eis o segredo do poder d'essa voz unica na historia da politica portugueza e grande entre as maiores da humanidade. Se toda a vida de José Estevão «foi uma consequencia rigorosa da sua composição moral», como já notamos, os recursos da sua arte, mais ainda do que o esforço do seu braço, d'ahi tiraram todo o poder de encanto e victoria. Ouçamol-o ainda, em momentos de sereno julgamento. As horas de calma confirmarão a verdade de que nos deram testemunho os momentos de phantasia estimulada e abrasada pela presença dos adversarios, pelas suas provocações e pela viveza do combate: «Foram os ministros da carta que, depois da convenção d'Evora-Monte, consentiram que o punhal das facções andasse solto pela capital, vingando odios e malquerenças passadas, que os moribundos viessem arrastando-se a dar o ultimo arranco na sua presença, e não sei mesmo se com as rodas das suas berlindas pisaram algumas vezes os cadaveres dos infelizes que deixaram assassinar! Este punhal devastador passou da capital para as provincias, e das mãos dos fanaticos politicos para a dos salteadores faccinorosos. Penetrou as nossas mais pequenas povoações, infestou todas as nossas estradas, e semeiou por toda a parte os seus horrorosos estragos! Isto são factos, sr. presidente: o assassinato começou em Portugal por fanatismo politico, alentou-se por desleixo, continuou pelo exemplo, e generalisou-se por necessidade. Por necessidade, sim! sr. presidente. A lei mais imprudente, a mais atroz e provocante, a lei das indemnisações, levantou esperanças enganosas, suscitou pretensões esquecidas, sanccionou exigencias indiscretas, e distraiu dos seus mestéres o laborioso artista, o pequeno commerciante, o proprietario de poucos teres, com a espectativa de promettidas delicias, com a mira dos prejuizos resarcidos. A illusão dissipou-se, e os homens illudidos, tendo perdido o habito do trabalho, entregaram-se ás violencias para haver aquillo que a lei lhes tinha promettido, e cuja recusa reputavam depois um roubo que lhes dava direito a outro roubo. A lei das indemnisações espalhou no paiz mais de tres mil punhaes, e perdeu muito cidadão util e honesto. Recaia pois a culpa d'esses assassinios sobre quem promulgou a lei[39]!...» [39] _Discursos_, pag. 77. Passagens como esta, e contam-se por muitas dezenas, leem-se e repetem-se n'uma invariavel impressão de pasmo e confusão e applauso, em que não sabemos o que mais nos captiva e turva, se a nitidez do desenho e do quadro, tão firmemente traçado como ponderadamente illuminado, se a profundeza da analyse dos sentimentos conjugados para um mesmo crime, se a exposição dos desvarios, desordens e dissolução que d'elle resultaram, se o peso da condemnação que pela simples palavra d'um só homem lhe castigou os fautores e instrumentos, deixando-os eternamente marcados de ignominia. Só «a supremacia moral, que, não nos enganemos, é o unico poder verdadeiro»[40], será capaz do impulso inicial para taes milagres. E, se por uma rara concessão do destino vem favorecel-a e traduzil-a a prompta justeza d'expressão, resultará n'um explendor soberanamente glorioso. [40] _Discursos_, pag. 322. O genio latino, que encarnou no heroe de tantas batalhas pelejadas pela liberdade, para o lançar no fragor temeroso das armas e para o fazer subir aos rostros do forum, infundindo-lhe no animo o mais depurado civismo, a plena imolação ao bem da patria, resurgiu n'elle tambem para a lucidez perfeita da concepção do pensamento e para a consequente sobriedade de o enunciar, para a renovação d'essa arte que até hoje ficou como qualquer cousa extrema, culminante, da capacidade da raça e suas tradições. Filho abençoado e dilecto d'esse genio, José Estevão fielmente o serviu. Se encontrava «um estado de miseria, de confusão e d'anarchia», logo via deante de si os punhaes dos assassinos, a debilidade dos tumultos e o desleixo da indifferença»[41]. Se procurava a ordem que convinha á estabilidade das nações e á prosperidade dos povos, essa ordem «teria toda a efficacia d'um principio sem ter os desvarios d'uma paixão; era um elemento governativo e não a bandeira dum partido; era um sedativo e não um cauterio para as paixões populares; confessava-se sem alarde e servia-se sem galardão»[42]. Não admittia que «se suspendessem as garantias só pela possibilidade de revoluções, só pela possibilidade d'ataques á ordem publica»; porque, «se se enthronisa tal principio, a liberdade fica um receio constante, o despotismo uma prevenção permanente, o arbitrio o direito commum, a lei a excepção»[43]. E sempre assim pensava e assim dizia, n'esta impetuosa penetração e comprehensão das situações moraes em toda a sua latitude, definindo-as immediatamente em todos os graus e aspectos, n'uma subita e clarissima enunciação, tão exacta e condensada como completa. Assim nos desvendava n'um relampago mundos extensissimos, em que as paixões politicas se agitavam, e assim verberava, só por os apontar e expor á justiça, os vicios e erros que n'ellas se involviam e as corrompiam. Assim nos tinha atonitos e subjugados, por fim escravos da sua vontade, do seu querer e dos anceios sem macula do seu coração. [41] _Discursos_, pag. 74. [42] _Discursos_, pag. 96. [43] _Discursos_, pag. 173 Porventura, a prodigiosa destreza do genio na arte foi compensação das penas de muito desengano do apostolo e ergueu-o de muito desalento, para renovar suas cruzadas em pról da felicidade dos homens e da dignidade da patria. Este poder de definir, esta rara e superior capacidade de exprimir em formas de rematada belleza todas as emoções da alma, e particularmente as suas aspirações de rectidão e justiça, de continuo inflamadas e alvoroçadas pelo decorrer dos acontecimentos, cristallisavam em uma obra magnifica, honra e gloria de quem a edificou e da raça que a produziu, e ao mesmo tempo representando um propulsor energico da realisação dos sonhos que a inspiraram. E José Estevão, em meio das magoas e contrariedades que soffria na carreira politica, ferido de desillusões a cada passo e por ellas rendido á consciencia de successivos e interminaveis desastres, havia necessariamente de sentir, n'uma vaga aprehensão do proprio valor, que deixar os erros dos homens e as desgraças da nação estampados com aquella radiante eloquencia, chorai-os com aquelle poder de vibração communicativo, era já só por si uma alta e nobilissima victoria, era precaver os incautos e os vindouros contra iguaes desvarios, corrigir severamente os culpados e incitar os bons ao resgate do mal e á conquista de melhores dias. Era, por conseguinte, trabalhar n'uma obra, duradoura e solida, de grandes beneficios, cujo encanto e premio intimo não lhe consentiam repouso e perenemente o traziam em sua obediencia, assegurando-lhe a proficuidade do combate. Se toda a sua arte foi consequencia da sua composição moral, e é indubitavel que o foi, não parece menos certo que a sua composição moral deveria singularmente ser auxiliada e mantida em toda a pureza por effeito da arte, que lhe permittia auscultal-a, vêl-a, tocal-a em formas d'um enlevo captivante e soberano, avivando d'este modo o seu bemfazejo dominio. Ao abrigo dos incitamentos e instancias parlamentares, fóra das distracções a que de bom ou máu grado tinha d'acudir por virtude do logar e da situação, no remanso que lhe permittia toda a pausa e reflexão, quando o orador pôde tornar-se escriptor, a divina obsessão de considerar nos homens e nas acções o seu valor e significação moral attingiu em José Estevão a ultima e mais alta perfeição. O retrato que nos deixou do rei D. Pedro V vale a melhor esculptura dos mestres, se é que a arte de modelar e fazer reviver a substancia etherea do sentimento humano não é superior ao talento d'animar o marmore e lhe insinuar as palpitações da carne. «Como morreu o rei? Porque morreu o rei?», escrevia José Estevão. «A paixão publica é grande e as paixões são inventivas, imaginosas, despoticas, desarrasoadas, absurdas. O sentimento pelas vidas que nos são caras cae em desconhecer o poder dos factos e arroja-se até a negar as leis da natureza. «Não queriamos que o rei morresse. Não acreditamos que o rei tenha morrido. Louca pretensão! Vã incredulidade! «Os medicos dirão que nome scientifico poderam dar aos padecimentos corporaes que pozeram termo á existencia do rei; e que elementos haveria na sua compleição physica que apoucassem a resistencia ao mal que o acometteu. «Esta sentença deve aquietar todos os animos e persuadir o paiz á resignação. «Mas, se o sentimento publico quer descontinuar causas malevolas, machinações tenebrosas na morte do rei,--se se quer desconsiderar os imprescrutaveis decretos da Providencia para substituir a pensamentos de humildade concepções peccaminosas,--se se obstina em não imputar este triste acontecimento ás suas causas naturaes, não nos será permittido investigar se os acontecimentos da vida do rei e a sua composição moral concorreram muito para apressar o fim dos seus dias? «A consciencia timida do rei, a exaggeração dos seus escrupulos, os seus desejos de completa perfeição na vida privada e na vida politica, as suas aturadas occupações, os seus infortunios domesticos tinham gasto as suas forças e acabrunhado o seu espirito. «Pouco expansivo no tracto, com um viver recolhido, com o espirito continuamente preso a ideias determinadas, sempre mal contente dos negocios publicos, impossibilitado pela sua lealdade constitucional de metter n'elles a mão mais profundamente, confiando talvez que o poderia fazer com utilidade publica, deixou-se consumir e ralar d'esta complicação d'embaraços, d'aspirações, impossibilidades e conveniencias. «A apprehensão continuada sobre as difficuldades do seu cargo politico, aggravada em cada occorrencia mais grave pelo receio de não sair bem d'ella, tinha levado o seu espirito a considerar a arte de governar nos termos d'um problema scientifico, que o trazia sempre occupado. Os espinhos da sua situação não só o pungiam, mas eram o objecto das suas meditações, e todas as suas faculdades carregavam com o duplicado trabalho de resolver os negocios occorrentes e d'investigar por que modos e com que maximas um rei podia fazer a felicidade dos seus povos, sendo estimado dos contemporaneos e admirado dos vindouros. «O rei passava, só, largas horas no seu gabinete. Só, não dizemos bem, que o acompanhavam de continuo a consciencia e a historia. Sabresaltado por uma e estremecendo da outra, o seu espirito luctava no mar d'incerteza, e, depois de muito trabalhar, nem acabava satisfeito dos expedientes que se lhe antolhavam, nem das soluções doutrinaes que lhe vinham á mente. «Correndo pelo sentido os casos da sua curta e tormentosa vida não achava n'estas recordações com que robustecer o seu animo, nem onde repousar o espirito da sua agitação interior. «Rei muito antes da epocha em que o seu amor filial lhe consentia desejal-o, em que a sua sisudeza lhe permettia acceitar a corôa com a confiança de bem preparado para os encargos d'ella; viuvo na edade em que a maior parte dos homens não tem ainda escolhido esposa, e no momento em que o seu coração começava a gostar os prazeres da vida conjugal; não havia bem que não viesse do mal, nem ventura que a fortuna lhe não roubasse. «Ferido nos seus affectos intimos, mortificado de desastres, as epidemias parece que esperavam a sua ascenção ao throno para assaltarem o povo. Perseguia-o a infelicidade como rei e como homem. Dir-se-ia que a morte estava apostada a trazer-lhe sempre deante dos olhos o seu horror, e este sestro havia de pesar-lhe ao coração como um presagio. «Infelizmente as qualidades do rei careciam d'aquelle equilibrio que contrapeza os bens com os males da vida. Nos raros gosos que a sua sorte mesquinha lhe consentiu, sentia sempre o amargo essencial que ha ainda nos affectos mais gratos da vida. Por outro lado o pezar para elle era extremo: não levava em si nenhum lenitivo. O seu espirito não comprehendia as atenuações naturaes de todo o infortunio, nem o seu coração era feito para conhecer a _alegria_ da desgraça. «A expressão será temeraria ou infeliz; mas ha nas mais densas cerrações da alma uma luz, embora tenue, que rasga a escuridão e que nos deixa enxergar ao longe horisontes menos carregados, e ás vezes até risonhos. Para além d'estes horisontes estanceiam as consolações humanas, tão variadas e efficazes como são numerosos e terriveis os males da vida. Mas o rei não respirava as auras d'aquella região. Não sabia consolar-se, e falto d'este auxilio indispensavel nos tormentos do mundo decaiu na superstição do infortunio. Julgou-se votado a elle e curvou-se á sua sorte»[44]. [44] Artigo publicado no _Districto d'Aveiro_. Vid. Marques Gomes. _L. c._, pag. 156. Foi este o monumento, do qual apenas destacámos um pedaço, que José Estevão ergueu sobre a sepultura de D. Pedro V, logo apóz a sua morte. Depois d'elle, outros vieram que pelo bronze e pela palavra tentaram consagrar a sua memoria. Nenhum, porém, jámais o excedeu, nem sequer o igualou, na resurreição da nobreza ingenita do rei e da magestade tragica da sua queda. Pelo labor expontaneo das suas energias, o genio de José Estevão constituiu-se n'um tribunal, esclarecido e augusto, com tanta rectidão para condemnar a perversão criminosa e a combater, emquanto importasse estorvo ou aggravo á felicidade humana, como magnanimidade para sanar por indulgencia as feridas que por dever fosse coagido a rasgar. Quando deixou de pulsar o coração que o animava e movia na terra, foi um dia negro; espalhou-se em torno como uma onda de sombrio e desesperado terror. A profundeza da dôr confessou a magnitude da perda. Emudecera para a democracia, para os apostolos dos seus sonhos e para os opprimidos das escravidões que a suffocam, o eleito que lhes ouvia os gemidos e lhes interpretava a anciedade, quem lhes restituia os direitos e lhes fazia vingar as aspirações. Não era um homem que a morte arrebatava; era um templo sagrado que se submergia. Não era um tropheu dos escudos nacionaes que se esfarrapava, uma flamula das suas glorias que se desfazia; era um écco da justiça divina que para sempre se calava, precipitando em angustia os que consolava, defendia e amava. BIBLIOGRAPHIA Sómente de tres livros me servi para este pobre estudo: _Discursos parlamentares de José Estevão Coelho de Magalhães_, colleccionados por Joaquim Simões Franco e editados por A. Augusto de Souza Maia, Aveiro: Imprensa Commercial, 1878. _José Estevão, Apontamentos para a sua biographia_, por Marques Gomes, Porto: Typographia Commercial, 1889. _José Estevão, Esboço historico_, por Jacintho Augusto de Freitas Oliveira, edição de François Lallement, Lisboa: Sociedade Typographica Franco-Portugueza, 1863. Sobre a parte anedoctica da vida de José Estevão encontram-se notas interessantes nas obras do meu amigo e illustre escriptor Sr. Mello Freitas, particularmente no seu livro _Violetas_ e nas conferencias que sobre este assumpto fez em Aveiro, em 30 d'abril de 1909 e 14 d'agosto do mesmo anno. INDICE Pag. PODER D'ENCANTO VII I. _Ideias politicas_ 1 Os grandes homens e o seu tempo 1 Fontes do liberalismo portuguez 6 Phases e aspectos da Revolução Franceza 9 A França de 1830 25 José Estevão e a tradição politica 27 A sua concepção religiosa 32 O seu catholicismo 37 O movimento economico 42 Victoria da burguezia 61 Criterio economico de José Estevão 65 O caracter politico 75 II. _Caracter e Arte_ 83 José Estevão e o romantismo 83 Espirito heroico 92 Caracter moral 105 Exigencias da evolução politica 110 Ultimas aspirações 122 Derradeira esperança 129 O orador 133 A imaginação 136 Intuição moral 149 O genio latino 152 O escriptor 155 DO MESMO AUCTOR _Vozes do meu lar_, 1 vol. _Na Paz do Senhor_, romance, 1 vol. _Reino da Saudade_, romance, 1 vol. _Via Redemptora_, 1 vol. _Apostolos da Terra_, 1 vol. _Sonho de Perfeição_, romance, 1 vol. _S. Francisco d'Assis_, 1 vol. End of the Project Gutenberg EBook of José Estevão, by Jaime de Magalhães Lima *** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK JOSÉ ESTEVÃO *** ***** This file should be named 28902-8.txt or 28902-8.zip ***** This and all associated files of various formats will be found in: http://www.gutenberg.org/2/8/9/0/28902/ Produced by Pedro Saborano. A partir da digitalização disponibilizada pela bibRIA. Updated editions will replace the previous one--the old editions will be renamed. Creating the works from public domain print editions means that no one owns a United States copyright in these works, so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United States without permission and without paying copyright royalties. Special rules, set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to copying and distributing Project Gutenberg-tm electronic works to protect the PROJECT GUTENBERG-tm concept and trademark. 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Redistribution is subject to the trademark license, especially commercial redistribution. *** START: FULL LICENSE *** THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK To protect the Project Gutenberg-tm mission of promoting the free distribution of electronic works, by using or distributing this work (or any other work associated in any way with the phrase "Project Gutenberg"), you agree to comply with all the terms of the Full Project Gutenberg-tm License (available with this file or online at http://gutenberg.net/license). Section 1. General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg-tm electronic works 1.A. By reading or using any part of this Project Gutenberg-tm electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to and accept all the terms of this license and intellectual property (trademark/copyright) agreement. 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